segunda-feira, dezembro 25, 2006

Noite feliz

O Natal sempre me despertou ambiguidades. Festa mais esperada da infância, se transformou na mais enfadonha durante os anos céticos da adolescência, para voltar a ser a mais esperada já na idade adulta, com a chegada das novas crianças da família.
Oscilando entre a tradição cristã e o consumismo capitalista predador em sua pior forma, o Natal me ensinou a mentir. O mito de Papai Noel, quando revelado, é prova chocante de que a mentira faz parte da vida e é praticada até pelos nossos pais, ídolos incontestes na tenra infância.
Essa descoberta me marcou tanto, aos seis anos de idade, que até hoje me lembro da cena. Um amiguinho me disse na escola que ele não existia. Eu duvidei. Questão levada adiante, a professora saiu-se com uma resposta alarmante.
- Pergunte à sua mãe.
Foi a primeira coisa que fiz, quando cheguei em casa. Minha mãe estava sentada à sua máquina de tricot, sob a luz amarela do quarto de costura, minha irmã mais velha - que já sabia da notícia -, assistia à tudo com ar de superioridade.
Ontem, ceia à mesa, o chester já sem uma coxa e com o peito fatiado, lembrei da história. Queria saber se a sensação de choque havia marcado o demais também. Alguns lembravam de como haviam recebido a notícia. Meu irmão viu suas ilusões morrerem na indiscrição de uma empregada que, ao ouvir-lhe imaginando a cartinha, calou-o:
- Que Papai Noel? Isso não existe, menino. Seu pai compra os presentes. Pergunta pra sua mãe.
Caso mais triste foi o de minha mãe. Ela acreditou no bom velhinho até os 10 anos de idade. Naquele tempo era diferente, não havia tevê, internet. As crianças eram mais bobas. Ela acordava todo dia 25 de dezembro e encontrava o presente debaixo da cama. Acreditava de verdade e descobriu a mentira da pior maneira possível. Seu pai havia morrido durante aquele ano de 1955. Quando se aproximava a festa, ela comentou com minha avó o que pretendia pedir ao Papai Noel. E ouviu a resposta.
- O seu Papai Noel já morreu.
Do jeito que ela conta, minha avó parece uma pessoa seca, amargurada. E talvez estivesse mesmo desse jeito, naquele ano, em função da perda precoce do marido. Porque, para mim, ela sempre foi doce. Triste, mas doce e incapaz de dizer algo desse tipo à uma criança.
A melhor história da noite, porém, que fechou com chave de ouro o assunto da ceia, foi a da minha cunhada. Quando chegou a vez dela, saiu-se com esta:
- Do Papai Noel, não me lembro bem. O que me marcou mesmo, de verdade, foi quando descobri que a Vovó Mafalda era homem. Isso sim foi um choque.
Simplesmente sen-sa-cio-nal!

sábado, dezembro 23, 2006

O surto do 13º

Talvez seja o espírito natalino, talvez seja o calor da guanabara. Ninguém sabe explicar muito bem o surto de benevolência que acomete a cidade no mês do 13º. Como que por milagre, daqueles que nem Papai Noel realiza, todos que têm algum poder querem usá-lo para melhorar a vida dos que passam o resto do ano elegíveis aos 95 reais do bolsa família. Nem que, para isso, distribua a renda alheia.
Acometida desse surto, por exemplo, a caneta do prefeito assina, todo mês de dezembro, um decreto autorizando a bandeira dois nos amarelinhos. 24 horas por dia, sete dias por semana.
- É o nosso 13º, chefia - explica o taxista que, graças à benevolência da caneta socialista, engorda o peru de Natal entre três e cinco reais por corrida, dependendo do trajeto.
A pistola do chefe da boca de fumo na Cidade Nova também é sensível às barbas brancas de Noel. Durante o ano todo ela cospe chumbo nos pequenos bandidos que se atrevem a realizar pequenos furtos na região do movimento. Em dezembro, se cala e tolera a transferência forçada de renda dos trabalhadores pobres que circulam pela região para os vagabundos de todas as idades que precisam melhorar a ceia de natal.
Os roubos aumentam consideravelmente nas ruas em volta dos morros de São Carlos e Boréu, mas não vá abusar da boa vontade da pistola. Assaltar pode, atirar no assaltado não. Porque, aí, quem fica sem 13º é o traficante. Vítima baleada nas redondezas derruba as vendas da boca. Não por causa da presença da polícia, veja bem. O problema é a imagem de área violenta.
Má fama derruba mais os lucros do que as viaturas da corporação. A presença da polícia é rotina na área, carros totalmente apagados, sem incomodar ninguém. Afinal, os tiras também precisam do 13º para engordar o peru de Natal.

terça-feira, dezembro 12, 2006

A Árvore da Fortuna e da Felicidade

Era uma vez um antigo reinado da fantasia à beira de uma lagoa e de um mar imenso, onde muita gente tinha pouco e pouca gente tinha muito. Um dia, um dos habitantes que tinha muito mais entre os que muito tinham decidiu gastar um pouco de sua riqueza. E assim semeou cinco milhões de moedas de ouro que fizeram nascer na lagoa uma árvore gigante, de 82 metros de altura, pesando cinco toneladas. Como era Natal, essa árvore se iluminava à noite, com a ajuda de 2,8 milhões de lâmpadas.
O espetáculo era tão lindo de se ver que todas as noites 80 mil pessoas se deslocavam até a beira da lagoa só para contemplá-la por alguns minutos. Nesse mundaréu de gente do reino havia de tudo: gente que tinha muito, gente que tinha pouco e até gente que nada tinha. Tudo ali, democraticamente misturado, assistindo pacificamente àquele milagre de luzes do Natal.
Muitos entre os que pouco tinham perceberam que havia, nessa festança de gente, uma oportunidade de aumentar o quase nada que tinham ganhando um pouco dos que tinham muito. E começaram a oferecer pequenas comidinhas. Pipocas, churros, churrasquinho, milho verde, hot dog, skol, skol, skol, e até outras quinquilharias que nem de comer eram, como colares, pulseiras, broches, pins e toda sorte de artefatos capazes de encantar a toda a gente.
Intrigados com aquela farra comercial diante das luzes, os sábios matemáticos da associação comercial do reino fizeram contas em seus ábacos e chegaram à conclusão que, distraída pelas luzes da árvore e pela fominha ou gula naturais do ser humano, a gente que à beira da lagoa se reunia distribuía 100 mil moedas de ouro por noite aos que menos tinham. Isso durante a semana. Nos finais de semana, mais e mais gente se aglomerava e o valor subia a 500 mil moedas de ouro!
A se confiar nos ábacos, descobria-se que 3,7 milhões de moedas de ouro passariam dos bolsos mais cheios para os mais vazios apenas naquele mês, já descontados os dias posteriores ao Natal, quando o interesse pelo enfeite diminuiria naturalmente. E somadas às 5 milhões de moedas gastas na árvore, o valor chegava a 8,7 milhões de moedas de ouro!
Perdidos em seus mundos particulares de zeros e vírgulas, os sábios nem se deram conta, mas estavam diante do maior espetáculo de redistribuição de renda espontânea do reino da fantasia. Sem que o Rei Sapo precisasse assinar nenhum decreto criando um novo imposto ou concedendo mais bolsas miséria, os que muito tinham distribuíam felizes suas moedas de ouro enquanto assistiam encantados ao show de luzes.
Naquela noite de Natal, graças aos frutos da Árvore da Fortuna e da Felicidade, os que pouco que tinham puderam devorar frangos mais gordos em suas ceias. E depois de tomar alguns copos americanos de cidra, sonharam com um mundo onde todos distribuíam mais suas moedas de ouro para que melhor todos pudessem viver.
O sonho, porém, não sobreviveria aos fogos do dia 31, que com suas explosões acordariam a todos da magia da luzes. E os que muito tinham voltariam aos seus ábacos mesquinhos que, por um defeito de fabricação nunca solucionado, só ensinavam a somar, nunca a dividir.

P.S. - Esse conto de fadas é inspirado num fato verídico. Todos os números citados são reais e há provas de que a Árvore da Fortuna e da Felicidade existe. São as fotos abaixo.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Central do Brasil - Parte 3: O Trem do Samba

Todo dia 2 de dezembro a Central do Brasil sai da rotina. Para comemorar o Dia Nacional do Samba, um trem especial sai carregado de sambistas da velha e da nova guarda e vai até a estação de Oswaldo Cruz (em Madureira). Fica lotado, cada vagão com uma roda de samba diferente. Os bancos viram camarotes (todo mundo de pé em cima deles pra conseguir ver melhor) e os corredores parecem bloco de carnaval.

Pela primeira vez tive a sensação de que não era o trem que chacoalhava a gente, mas a gente que sacodia o trem, impondo o seu gingado e o seu ritmo. E também não era o xleque-xleque do trem que predominava. Ele era abafado pelo canto da gente, que em coro fazia a sua voz mais alta que nunca.

Olha aí o vídeo que a gente fez (canta um sambinha enquanto carrega, porque leva uns minutinhos...):

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Só porque o Brasil não é racista

O Fundo Itaú Social tem um belíssimo projeto chamado "Criança - Cuidando do Futuro", que usa a página de abertura do banco na internet para anunciar seus programas. O banner mais recente ensina as pessoas a doarem 6% do Imposto de Renda para projetos sociais. Um belo serviço, diga-se de passagem.
Quem clica sobre o anúncio vai para uma versão ampliada que mostra quatro crianças. Uma japonesinha segura um cartaz dizendo "Conheça os direitos"; um menininho com cabelos de anjo, numa bicicleta lá no fundo, segura outro dizendo "O que é" e uma garotinha de cabelo lisinnho, um livro no colo, está sentada ao lado de uma placa com a inscrição "Resultados". O único menino negro segura o cartaz principal com a frase: "Ajude a melhorar a vida das crianças - Destine parte do seu IR para projetos sociais. Veja como é fácil".
A agência de publicidade que produziu o anúncio provavelmente nem percebeu, tampouco a diretoria do Itaú Social que aprovou a sua veiculação, mas o que fizeram aqui foi colocar o negrinho pra pedir a esmola.
Toda a campanha desse projeto, aliás, está repleta de preconceito. (Vocês lembram daquela em que a menininha doava um livro sobre um astronauta na agência Itaú? Passava na tevê. A meinina que doava era branquinha; o menino que recebia, negro.)
Isso é preconceito e do pior tipo: aquele que, de tão arraigado, passa despercebido para a maioria das pessoas (inclusive para o movimento negro).
Quem quiser conferir o anúncio, pode clicar no link do título. Se não entrar o banner do Itaú Social na página de entrada do banco, dê um refresh que ele aparece.

Rio pipoca

O cheiro no ar há tempos me atrai a atenção - e toma-me trocados do bolso. Nas entradas do metrô, nos pontos de ônibus, em qualquer possível ponto de aglomeração, lá estão eles, geralmente no final da tarde, com suas panelas fumegantes, iluminados por um lampião à gás, estourando em milhos as reminiscências de filme na sala escura da infância.
Em São Paulo nos acostumamos a encontrá-los na porta do cinema, mas no Rio eles estão por todo lugar. Isto é, desde que não seja dezembro. Porque no mês do Papai Noel, mudam-se todos para a Lagoa Rodrigo de Freitas.
No final da tarde do último sábado, uma procissão de pipoqueiros cruzava a ciclovia e a Avenida Epitácio Pessoa a caminho do Corte Cantagalo. Partiam cedo em busca do melhor lugar para servir suas pipocas às milhares de pessoas que iriam, naquela noite, assistir à inauguração da Árvore de Natal da Lagoa, enfeite gigantesco que já se transformou em ponto turístico nesta época do ano.
O lugar nobre e a presença de turistas e da upper class carioca inflacionam o preço da iguaria. Vanderlei, pipoqueiro da Praça Onze que faz ponto na entrada do metrô, vende-me o menor saquinho por R$ 1 o ano todo. Em dezembro, ele se muda para a Lagoa, onde cobra R$ 2.
Na semana passada, comprei-lhe uma pipoca doce e ele não tinha troco. "Paga amanhã", me disse. No dia seguinte, ele não estava. Agora, mudou-se para a Lagoa e vou ser obrigado a atravessar o ano com essa dívida. Ele só volta à Praça Onze em janeiro, depois que a árvore deixar de colorir as águas da Lagoa.
Num passeio rápido no sábado à noite - eu também queria ver a árvore que todos os anos inova na iluminação -, perdi a conta de quantos carrinhos de pipoca se enfileiravam à beira da ciclovia, entre outros de churros, cachorros-quentes, churrasquinhos, biscoitos globo e bebidas em geral.
Parei no que me pareceu oferecer as doces mais suculentas. Joel, o pipoqueiro, contou que ficaria por lá naquela noite enquanto houvesse gente olhando a árvore. Talvez até amanhecer. Ele aprendeu o ofício com o irmão, dono do ponto do Cine Odeon, na Cinelândia. Trabalha normalmente na Praça Tiradentes, mas é pipoqueiro há pouco tempo. "Só uns oito anos", calcula.
Para assumir a profissão é preciso ter algum capital. Um carrinho de pipoca novo, de médio porte, feito em alumínio, custa cerca de R$ 2 mil num depósito que os fabrica na Rua do Lavradio, na Lapa. É possível parcelar esse valor em até cinco vezes. O lugar também aceita carrinho usado como forma de pagamento do novo e os aspirantes a pipoqueiro menos abastados podem começar por um modelo recondicionado.
Joel contou-me que qualquer um pode virar pipoqueiro. Todas as tentativas de organizar a categoria fracassaram. Num país onde até traficante tem sindicato (os vários comandos da vida), os pipoqueiros talvez sejam os últimos trabalhadores livres, estourando milhos em suas velhas panelas surradas, à luz de um lampião.
Salgada ou doce?

quinta-feira, novembro 23, 2006

Não é biscoito

Deu no Globo, aquele que não é biscoito. Dois bandidos numa bicicleta mataram ontem, com um tiro na cabeça, uma senhora de 58 anos que estava parada no cruzamento entre as avenidas General San Martin e Afrânio de Melo Franco. A bala entrou pelo rosto e saiu pelo alto da cabeça. Mesmo ferida, ela conseguiu movimentar sua Mercedez ML 500 por cinco metros. Socorrida pelos bombeiros, morreu pouco depois na emergência do Hospital Miguel Couto. O crime ocorreu a 350 metros do 14º Distrito Policial. Segundo a filha, que estava no carro, os bandidos teriam disparado porque ela demorou a tirar o relógio que levava no pulso. O crime mereceu uma página do jornal hoje e deve render mais pelos próximos dias porque:
  1. A vítima era branca;
  2. A vítima era rica - divorciada do dono de uma gigante da metalúrgia;
  3. O crime aconteceu no Leblon, o mesmo das novelinhas do Manoel Carlos.

*****

Também deu no Globo, o mesmo que não é biscoito. Um jovem motociclista foi morto por policiais quando abordava um taxista. Os PMs pensaram que ele fosse assaltar o táxi, mas na verdade ele estava pedindo ajuda para socorrer o pai, que acabara de sofrer um derrame. O pai acabou sendo socorrido por um vizinho, mas morreu a caminho. Quando chegou ao hospital com o corpo do marido morto, a mãe soube que o filho havia sido assassinado por policiais e teve um enfarte. Não morreu, pelo menos na hora. Mas até hoje não sei o que aconteceu com ela porque, apesar desta tragédia ter acontecido no dia 3 de novembro, nunca mais deu nada no jornal. Afinal:

  1. O rapaz era negro;
  2. Era pobre - usava a moto, financiada pela mãe, para entregar pizza;
  3. O crime aconteceu na entrada da Favela do Jacarezinho, onde a vítima morava, lugar que não aparece nas novelas do Manoel Carlos.

Algum dos ilustres amigos jornalistas tem idéia de por que a nossa imprensa é tão parcial e preconceituosa?

domingo, novembro 05, 2006

Gaza com sambão

Domingo, 5 de novembro de 2006, 16h15.
O combate começou há cerca de 20 minutos. Nossa posição fica bem no meio do fogo cruzado, aparentemente trocado entre os morros da Providência, de São Carlos e do Santo Cristo. Ninguém sabe a razão da troca de tiros.
Tiros esporádicos não são novidade na região. Mas um combate tão longo é novidade para todos aqui, inclusive para os que trabalham há mais tempo. Protegido apenas por um telhado de amianto, o grupo acompanha as seqüências de tiros de repetição com um misto de apreensão e surpresa. Os que chegam para trabalhar correm assustados pelo pátio aberto até entrar no prédio. Todo mundo tem medo de bala perdida.
A única coisa que nos faz ter certeza de que não estamos no meio de um combate no Iraque ou na Faixa de Gaza é o som de fundo. Um samba-enredo pesado. Hoje é dia da escolha do samba vencedor da Escola Estácio de Sá para o Carnaval 2007, e a quadra fica bem atrás da gente.

quinta-feira, outubro 26, 2006

Mágicos? Todos somos.




Tirei essas duas fotos ontem, andando pelo calçadão de Nova Iguaçu.

Na primeira, o tiozinho apresentava um desentupidor de pias Destop. Mágico. É só encher de água, acoplar ao ralo e...pronto. Seus problemas estão resolvidos com 3 ou 4 bombeadas. Na segunda, o cara mostrava uma serrinha de bolso que corta vidro, azulejo e o que mais você quiser. Corte na medida certa.

Todo dia tem um Copperfield novo em Nova Iguaçu. Mágicos da rua, que seduzem e divertem quem passa com as suas engenhocas. Há uma para cada um dos seus problemas.

Eu mesma comprei uma dessas outro dia: um furador de coco. Estou maravilhada. Economizo 5 minutos para cada coco que abro. Como sou movida a coco e abro um por dia, são 35 minutos economizados cada semana. 2h20 ao final de um mês! Dá pra dar uma volta inteira na Lagoa...

Desde que descobri o furador de coco estou ainda mais certa de que um dos maiores dons do ser humano é a criatividade. Somos todos meio mágicos. Nascemos para criar.

O negócio é que, presos ao rolo compressor do dia-a-dia, acabamos deixando de lado a varinha de condão. Fora aqueles que nem têm a chance de descobri-la... Quanto desperdício! Imagina se todo mundo colocasse os miolos pra funcionar para acabar com as pobrezas do mundo...........

terça-feira, outubro 24, 2006

Incompreensão

Foi de cortar o coração.
Eles embarcaram no primeiro ponto depois do Túnel Rebouças, sentido centro, sob o Viaduto Paulo de Frontein. Pai, mãe, dois filhos. Todos bem vestidos, arrumadinhos, os garotos de boné enterrado na cabeça. Ônibus já em movimento, o pai foi erguendo um dos garotos para passar sobre a roleta. O cobrador invocou:
- Quantos anos ele tem?
O pai pressentiu a humilhação. Olhos baixos, tenso, disse a verdade:
- Sete anos.
- Sete anos tem que pagar passagem. Tá na lei. Olha o papel aí na sua frente - apontava um adesivo colado num dos vidros.
- Tem de pagar? - o pai perguntou, rosto carregado, depois de um breve silêncio constrangedor.
Não regateou, não esbravejou, não tentou o jeitinho.
- Pede pro motorista parar e abrir aí na frente - tentou dizer no tom mais baixo que conseguiu, com vergonha de que todos percebessem o que estava acontecendo.
O ônibus encostou, a família desceu pela frente. Fiquei olhando aquele pai de família, cabeça baixa, olhando para o chão, humilhado por não ter dois reais para pagar uma passagem para o filho. Não era um espertalhão tentando dar um golpe na companhia. Era apenas um pai de família, desempregado provavelmente, sem dois reais para pagar a passagem do filho. No rosto dos meninos, estava estampada a incompreensão. O que estava acontecendo? Pareciam não entender o que estava acontecendo.
O ônibus arrancou, deixando a família a pé, sob o viaduto.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Não é biscoito

Deu n'O Globo, aquele que não é biscoito (e a prova está no link do título).
Uma publicitária de 31 anos e o irmão dela, vendedor, saíam de uma festa infantil com o filho dele, de 5 anos, e passaram na Tijuca para buscar uma sobrinha, de 14 anos. Quando pararam para pegar a menina, por volta de 21h40, foram abordados por dois homens armados.
A família foi feita refém, um dos bandidos assumiu a direção do Astra preto enquanto o outro embarcou no banco traseiro, com as duas crianças e o vendedor. O bandido entrou na rua Conde de Bonfim e quando pegava a Avenida Melo Matos, cinco minutos depois, foi alertado pelo dono do carro de que a área era perigosa.
O vendedor pressentia que o impossível pode e às vezes acontece. Poucos metros depois de entrar na avenida, o Astra foi fechado por um Peugeot branco e dele desceram três homens armados. Era um assalto. Um segundo assalto. O assalto do assalto!
O bandido ao volante argumentou que já estava "puxando" aquele carro. O bando do lado de fora não quis saber de coleguismos. O ladrão-motorista foi arrancado do veículo e o comparsa fugiu levando bolsas, carteiras e celulares. O novo bando assumiu o carro e liberou a família.
Informado do caso, o comandante do 6º Batalhão de Polícia Militar disse que nunca tinha visto algo assim em toda a sua carreira de policial. Mas alegou que a área onde ocorreram os dois assaltos não é problemática.
Só para informação do tenente-coronel, foi o quinto assalto sofrido pela publicitária na região em dois anos. O último aconteceu no Dia dos Pais, em agosto. Mas a culpa deve ser mesmo do acaso. Afinal, só ontem foram registrados nove roubos de veículos na via expressa da Linha Amarela. E o Rio de Janeiro continua lindo...

domingo, outubro 22, 2006

Olhar Estrangeiro e Piauí

Mesmo quem não gosta de documentários tem boas chances de se divertir assistindo a "Olhar Estrangeiro", de Lucia Murat. A proposta da diretora é simples: expor os clichês patéticos dos filmes estrangeiros que retratam o Brasil. Mas não apenas ao público; ela leva as fantasias estapafúrdias aos diretores, roteiristas e atores que participaram das produções, pedindo explicações. O resultado revela a ignorância e a arrogância com que a indústria do cinema trata a informação que espalha pelo mundo.
Dois exemplos para incentivar, só para dar um gostinho. Um dos filmes americanos que Lúcia pesquisou mostram o Rio quase como os portugueses o encontraram: com todas as cariocas de topless para cima e para baixo. Em plena década de 80! Numa outra fita francesa da mesma época, Roberta Close faz ponta. O diretor encantou-se com sua beleza quando chegou ao Rio e a convidou para o elencon sem saber que ela era homem.

***
Pegando carona, não deixem de ler o ensaio de Roberto Pompeu de Toledo, entitulado "Papagaio", na edição número 1 da revista Piauí. Vale muito mais do que as aulinhas de sociologia da universidade. Aliás, a revista inteira é um achado para quem gosta de ler e de pensar.

quinta-feira, outubro 12, 2006

Entrevista com o Cristo Redentor

Pouca gente sabe, mas o dia 12 de outubro, além ser das crianças e da Padroeira do Brasil, também marca o nascimento de um dos maiores ícones da fé em todo o mundo: o Cristo Redentor. Este ano ele completou 75 anos e, para comemorar, recebeu o blog A Casa da Lagoa com exclusividade para a seguinte entrevista.

A CASA DA LAGOA - O senhor está completando 75 anos de braços abertos. Como foi passar esse período todo aí sobre o Corcovado?
CRISTO REDENTOR - É irmão, não foi fácil não...

CL - "Irmão"? Como assim, o senhor também aderiu à gíria dos bandidos?
CR - Que gíria? Somos irmãos, todos filhos de Deus, esqueceu?

CL - Ah, entendi. Mas o senhor estava dizendo que não foi fácil...
CR - Exatamente. Você acha que é brincadeira passar todos esses anos de braços abertos? Sabe quanto pesa cada braço meu? 57 toneladas. E cada mão mais 8 toneladas! É um esforço e tanto. E nunca posso descansar um segundo, porque isso aqui tá sempre cheio de gente, helicóptero voando em volta com turistas tirando fotos... Não dá pra abaixar os braços nunca.

CL - O senhor recebe muitos cariocas todos os dias?
CR - Vamos esclarecer. Eu recebo muitos visitantes todos os dias, mas cariocas são poucos. Quase não vem carioca aqui não.

CL - Como assim?
CR - Você já viu quanto estão cobrando para subir até aqui? R$ 36 por pessoas. Ainda bem que eu nunca desço, ou na volta teria de levantar ainda mais os braços. Esse preço é um assalto! Cobrando tudo isso, só aparece estrangeiro por aqui.

CL - O senhor está no Morro do Corcovado, a 710 metros de altitude, com a melhor vista da cidade. Isso tem um preço, certo?
CR - Tem mesmo. Você conhece bem o Rio de Janeiro? Se conhece, sabe que aquela história de que aqui não faz frio não é bem assim. No inverno, este morro é o lugar mais gelado da cidade. Já no verão, é um calor insuportável, um verdadeiro inferno aqui em cima, com o perdão da palavra. Fora as vezes em que eu fico com a visão encoberta pelas nuvens. Já virou até bordão entre os cariocas. Quer saber quando vai chover? Olha para o Cristo. Se estiver encoberto... Ou seja, aqui é o primeiro lugar em que começa a chover. Não é fácil ficar plantado aqui em cima...

CL - Bom, mas o senhor está de frente para uma das vistas mais lindas do mundo.
CR - A vista da Baía de Guanabara, com o Pão de Açúcar? Até já enjoei, pra dizer a verdade. Prefiro aqui do meu lado direito, com a Lagoa Rodrigo de Freitas, Ipanema e Leblon. À minha esquerda fica o centro com todas as suas favelas e misérias. É pra lá que eu deveria olhar mais.

CL - No Centro também tem o Sambódromo. O senhor consegue assistir ao Carnaval aí de cima? Ou não pode por causa da nudez feminina?
CR - Consigo sim. Esse negócio de mulher pelada é bobagem. Passa até na novela das oito, não vou ver no Sambódromo? Agora, vou te confessar uma coisa: lá pelas 4 da manhã, começa a encher um pouco essa batucada. Podia acabar um pouco mais cedo pra me dar um sossego. Carnaval é fogo, meu irmão. A cidade enche de turista, isso aqui não pára. Fica lotado o dia todo. E à noite, é só batucada. Não tem Cristo que agüente.

CL - Por falar em Carnaval, o senhor já foi motivo de polêmica no Sambódromo quando tentaram usar sua imagem e a sua igreja reclamou...
CR - Alto lá. Como assim "minha igreja"?

CL - A Igreja Católica Apostólica Romana...
CR - Essa igreja não é minha. Eu nasci e morri judeu. Quem mudou minha religião foi o Simão, depois que eu tinha morrido, sem nem me consultar...

CL - O senhor quer dizer Pedro? Foi Pedro quem fundou a Igreja...
CR - Viu só? Ele mudou até o nome dele. Tinha mania dessas coisas. Aí fundou essa Igreja nova e eles se apoderaram da minha imagem. Não concordo com nenhum tipo de censura.

CL - Já que o senhor é contra a censura, não vai se negar a nos dar suas medidas. Até que o senhor está bem para quem tem 75 anos...
CR - Vamos lá: tenho 30 metros de altura e estou sobre um pedestal de mais 8 metros. Mas não me venha com essa de salto alto. Meu peso total é de 1.145 toneladas. Tá bom, pra minha altura.

CL - Para encerrar, o senhor afinal vai ou não voltar à terra?
CR - Irmão, eu estou aqui parado há 75 anos, com toda essa altura que acabei de revelar, e as pessoas nem prestam atenção em mim. Pagam esse dinheiro todo para subir e ficam fotografando a vista. No máximo apareço na paisagem das fotos de uns turistas que imitam minha posição, de braços abertos. Agora, se aqui em cima, com todo esse tamanho, ninguém olha pra mim, imagina se eu voltar como algum deficiente desses que se arrastam pedindo ajuda nos trens do subúrbio, ou como um morador de rua maltrapilho? Ninguém vai acreditar que sou eu. Fala a verdade: se eu aparecesse no Largo da Carioca barbudo, de túnica, dizendo "sou Jesus Cristo, voltei para salvá-los", blá, blá, blá... Você ia acreditar em mim? Duvido. Melhor ficar quietinho aqui no meu Corcovado.

terça-feira, outubro 10, 2006

Uma questão de perspectiva

Conforme eu havia prometido há algumas semanas, segue a história por trás da foto. No caso, devidamente ilustrada. Uma prova de que beleza é uma questão de perspectiva.


1 - Favela do Vidigal - Com cerca de 10 mil moradores amontoados aos pés do Morro Dois Irmãos, é uma das favelas com vista mais bela do Rio de Janeiro. Ela começou a surgir na década de 40 e leva o nome do antigo proprietário das terras, o major de milícias e cavaleiro da ordem imperial Miguel Nunes Vidigal, que ganhou o terreno de monges beneditinos. A explosão demográfica aconteceu nos anos 60, junto com o crescimento do Leblon. Desde 2002, os bandidos que controlam o tráfico de drogas aqui estão em guerra com os rivais da Rocinha. As últimas batalhas aconteceram no início deste ano, em território da Rocinha (veja número 3).

2 - Morro dois Irmãos e Pedra da Gávea - Dois exemplos típicos da generosidade do Criador com esta cidade. A Pedra da Gávea é ponto turístico conhecido, base de lançamento de asas-delta. O Dois Irmãos também é famoso. Já deu nome à música de Chico Buarque (o compositor é morador de suas encostas, no Alto Leblon) e atualmente aparece na abertura da novela Páginas da Vida, de Manoel Carlos, outro morador ilustre da região. Aliás, na abertura, você só não vê o Vidigal (leia número 1) porque a emissora providenciou uma folhinha que cai bem daquele lado. Será que era para esconder a favela???

3 - Favela da Rocinha - Já foi vendida como a maior favela da América Latina, com 200 mil habitantes! Exagero. O Censo de 2000 do IBGE diz que ela tem em torno de 50 mil (ah, então tudo bem). Surgiu por volta de 1930, com a ocupação de terras que pertenceram a um antigo Engenho de Açúcar. Os invasores haviam sido expropriados pela crise do café, de 1929, e lotearam o espaço em pequenas chácaras. Ali fizeram roças, cuja produção vendiam aos moradores do Leblon. Daí a origem do nome. Sua explosão demográfica aconteceu nos anos 50 e 60, quando o boom imobiliário em Ipanema e Leblon abriu milhares de empregos na construção civil - e milhares de nordestinos se mudaram para o local mais próximo em busca desses empregos. Também é controlada pelo tráfico de drogas e perdeu 10 'soldados' no último confronto com o Vidigal.

4 - Lagoa Rodrigo de Freitas - O espelho d'água de 2,2 quilômetros quadrados é belíssimo e atrai milhares de pessoas à ciclovia que a circunda nos finais de semana. Gente correndo, andando, pedalando nos 7,8 quilômetros de sua circunferência. Infelizmente, seus 6.200.000 metros cúbicos de água recebem diariamente dejetos domésticos que chegam pelas águas dos seus três afluentes, os rios Cabeça, Rainha e dos Macacos. O Estado jura que interrompeu o despejo de esgotos, mas a proliferação de algas e a mortandade esporádica de peixes não deixam dúvidas de que, de alguma maneira, o esgoto ainda chega em natura às suas águas.

5 - Edifícios de alto padrão do Baixo Gávea - Um dos bairros mais valorizados do mundo, com belos prédios que abrigam o topo da pirâmide de renda do IBGE. O contra-luz esconde, mas estão logo abaixo da Rocinha. Aliás, o Rio de Janeiro desmente a expressão criada por Elio Gaspari: aqui, o 'andar de baixo' fica em cima.

6 - Turistas no pedalinho - Finalmente, um casal de turistas pedalando tranquilamente na Lagoa, assistindo ao romântico pôr-do-sol, curtindo a ilha da fantasia, indiferente à toda essa chatice aí de cima.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Paz e compaixão

Eles vieram de longe, envoltos em suas vestes vermelhas e as cabeças raspadas. No entardecer rosa, emoldurados pelas montanhas verdes da Serra da Mantiqueira, entoaram seus mantras incompreensíveis ao vento que teimava em apagar as velas da cerimônia. Sem pressa, acalmaram a ansiedade de todos os convidados vestidos de branco. Sem falar uma palavra em português, trouxeram do Tibet um sentido para aquela união: sob a benção do Budismo, o jovem casal passava a simbolizar a paz e a compaixão de que o mundo tanto precisa. Que vivam a paz, a compaixão, e que as espalhem pelo mundo. Foi a única coisa que lhes pediram os monges, a eles e a todos os convidados. Vivas à paz, vivas à compaixão, vivas aos noivos.

sexta-feira, outubro 06, 2006

Diário de Naná


Fechei o Festival de Cinema do Rio, na última quinta-feira, assistindo a um primor de filme: "Diário de Naná". A história surgiu quando o pernambucano Naná Vasconcelos foi convidado, em 2005, a fazer uma viagem pelo Recôncavo Baiano em busca da música sagrada e do sagrado da música. Que espetáculo.
A fotografia de Jay Yamashita é primorosa (note a luz na cena em que Virgínia Rodrigues canta, acompanhada por Naná, no porão do Mercado Modelo, em Salvador). E o filme de Paschoal Samora voa em 60 minutos e termina despretensioso, mas deixando um misto de quero mais, uma emoção no ar que eriça a pele, arranca lágrimas.
Saí bagunçado com a possibilidade de ver ali, em technicolor na tela grande de um cinema do Centro do Rio, como eu não conheço o Brasil. E como esse Brasil são vários e tão profundos, místicos e secretos, que jamais poderei conhecê-los todos. Mesmo que pisasse nas pegadas de Naná pelo Recôncavo, não ouviria aqueles sons, não abriria aquelas portas. É tocante.

domingo, setembro 24, 2006

Malandragem inocente

Plantão chuvoso no domingo abandonado, lanchonete do trabalho fechada, máquina de guloseimas desligada, restou apenas a vendinha da tia na rua para o abastecimento da dose mínima de serotonina na forma de chocolates. Diante do balcão repleto de anti-ansiolíticos, um senhor negro encomenda:
- Um pacote de bolachas salgadas, água e sal, e dois iogurtes vigor, de morango. Mais tarde dá uma fome e essa bolachinha com esse iogurte cai bem.
Embora a prudência desautorize advinhações nesses casos, me arrisco dizer que ele avançou nos 60 e muitos anos. Sorridente, doa simpatia em troca de atenção. E vai explicando à tia atrás do balcão:
- Embrulha em jornal pra mim, por favor. Pode embrulhar os dois. E coloca num saquinho plástico, por favor.
A vista cansada sorri por trás de aros de acrilíco marrom com lentes grossas, de idade também incalculável. O guarda-chuva desbeiçado pende do braço médio. O senhorzinho explica a razão de tantos embrulhos:
- Quando eu chego lá no meu pedaço, os malandros vêm logo perguntando "o que tem aí, tio, o que tem aí?" Assim embrulhado no jornal, eu respondo "é pra por na encruzilhada, fio". Eles saem correndo na hora. Se eu disser que é comida, eles pegam pra eles. Mas pra encruzilhada, ninguém quer. Eles têm armas grandes, mas têm medo de macumba.
E se despede, divertindo-se com a inocência da sua malandragem.

sábado, setembro 23, 2006

A foto é minha, a história é sua

Caros, a primeira história do desafio saiu no blog Le Bal Masqué, da nossa querida M. Não deixem de ler. Continuo esperando a participação de vocês. Vamos colocar a imaginação para funcionar!

quarta-feira, setembro 20, 2006

A foto é minha, a história é sua


Como os freqüentadores de blogs em geral gostam de escrever, o desafio é o seguinte: baseado na foto, crie uma historinha para a cena. Daqui a alguns dias eu conto a minha.

sábado, setembro 09, 2006

Central do Brasil - Parte 2: Sermão no trem

Mal o trem sai da Central e uma dupla de engravatados que parecia inofensiva começa a cantarolar: "Deus vai te guiar, ouça a sorte irmão... pode descansar, na tripulação...". Olho em volta. Duas senhoras acompanham a cantoria bem baixinho. Na minha frente, um jovem lê um livro grosso com as laterais das páginas pintadas de rosa. Cara de Bíblia. Só aí é que cai a ficha: entrei no vagão dos evangélicos. Depois fui saber que existe uma espécie de código que diz que o vagão x é dos evangélicos, o y é do carteado, o z é dos universitários... Cultura de trem, que só aos poucos a gente pega.

Mas então estou eu de pára-quedas no vagão dos evangélicos. A música vai ficando mais alta e os pastores quase tão agressivos quanto torcedores de torcida organizada. Eu discretamente tampo o ouvido. Não sei se eles percebem, mas o fato é que imediatamente se aproximam e começam a pregar um salmo sobre ovelhas desgarradas... Uma história de que Jesus viu a ovelha desgarrada e fez questão de não deixá-la para traz. Colocou-a no ombro e a levou... Pronto, me dei mal... Os caras me sacaram e não vão me deixar pra trás.

E não deixaram. Foram 50 minutos de tortura. "Deixe Jeus limpar o seu coração! Jesus é o caminho, a verdade, a vida", gritava o que parecia ser mais xiita. E depois repetia sem parar o sermão que mais me marcou: "Aceite Jesus para guiar a tua alma... Jesus tem o plano da vida de cada um para essa manhã, e esse caminho não tem volta!"

Peraí, deixa eu ver se eu entendi: você que está lascado na vida, brother, não precisa se preocupar, não precisa nem pensar muito, porque Jesus já fez a sua agenda. Se o seu dia for uma merda, não é culpa sua. Estava escrito. Se você está cagado na vida, um abraço. Foi Deus quem quis. E o caminho não tem volta. Tudo o que lhe resta fazer é encher a caixinha da igreja pra garantir uma vida melhor no reino dos céus. Deus do céu, que discurso é esse que promove a passividade e o conformismo? Que injeção de inércia é essa que injetam diariamente na veia daqueles que, insatisfeitos com a realidade, buscam uma saída na espiritualidade?

Me preocupa ver que a cada dia mais gente desencana de escrever o seu dia e se deixa levar passivamente pelas páginas do destino que sobraram a elas. Convertidas a cordeiros de Deus, passam a ser arrebanhadas também pelos pastores de araque e pelos salvadores da pátria.

sexta-feira, setembro 08, 2006

Bairrismo explícito

Entre tantas experiências novas, morar no Rio me deu a chance de experimentar o ser forasteiro e de repensar a forma como sempre tratei forasteiros na minha própria cidade. Como a maoiria das pessoas que passaram mais de 15 anos em bancos escolares, eu não me considero preconceituoso ou bairrista. Mas será que realmente não sou?
A rejeição carioca a tudo o que lembra ou remete a São Paulo me incomodou muito desde que cheguei aqui. E o mais engraçado é que, na maioria das vezes, quem mais agride paulistas jamais pisou na terra da garoa. Os ataques vão das piadas pretensamente inocentes até manifestações raivosas contra o que não se conhece. Comecei a me questionar. Será que eu fazia o mesmo com cariocas em São Paulo?
A Pri não concordava com as minhas queixas a amigos cariocas. Dizia que eu levava muito a sério as piadas. Até o dia em que ela trombou de frente com uma agressão despropositada.
Transitávamos de bicicleta pela Lagoa, a caminho do vôlei nosso de cada domingo, quando um casal caminhando desavisadamente fechou a sua passagem num trecho de velocidade. Ela freou e se queixou: "Pô, meu, precisa fechar a ciclovia toda?". Qual a foi a reação imediata da mulher? "Volta pra São Paulo, paulista!" Gritando, numa ferocidade despropositada.
Talvez eu fizesse as piadas, talvez imitasse o sotaque carioca. Mas agredir alguém pela sua origem, isso nunca fiz. Nem com cariocas, nem com gente de lugar algum. E essa cena aconteceu em plena Lagoa Rodrigo de Freitas, habitada pelo topo da pirâmide do IBGE. Gente que passou mais de 15 anos em bancos escolares - em alguns casos, fora do Brasil. Só posso mesmo lamentar.

quinta-feira, setembro 07, 2006

Noturnas

Além de longas jornadas de trabalho, as noites de quarta-feira sempre reservam surpresas na volta pra casa. Sem carro, invariavelmente recorro aos táxis amarelinhos do Rio. E depois de 12, às vezes 15 horas lendo histórias de esporte, volto na madrugada ouvindo incríveis histórias de taxistas.
A de ontem encontrou seu fio na inocente pergunta: "Onde vocês ficam parados durante a madrugada? O ponto aqui no centro não é perigoso?" O motorista engatou a segunda com um caso recente, aconteceu durante a última guerra entre os morros de São Carlos e Querosene, em julho (leia o post "Atrações da Cidade Maravilhosa").
O relógio batia 2 da manhã numa noite morna quando um negro alto, ouro grosso no pescoço e anel de São Jorge no anular, bateu no vidro. "Dá pra me levar no alto do São Carlos, piloto?" O piloto sentiu o terreno. "Bicho tá pegando lá hoje." O sinistro acalmou. "Sem caô, piloto. Sou morador, tá na paz."
Sabe como é a vida pela rua, ele expliava. Vai dizer não? Depois o cara manda no morro, já viu. Passageiro embarcado, o carro começou a subir o morro. No caminho, o sinistro foi dando a letra. A guerra estava pegando e tinham desovado 13 corpos no valão da Presidente Vargas. Nem a polícia sabia ainda. De repente, no meio do papo, dobram a viela e errada e dão de cara com o caveirão.
Pra quem não sabe, caveirão é o apelido carinhos dos blindados usados pela polícia para entrar nas favelas. Os PMs ficam entrincheirados dentro, fazendo guerra psicológica com frases do tipo "Eu vim buscar a sua alma".
O negro, ao ver o caveirão, ficou tenso. "Faz a volta, piloto. Faz a volta." O taxista obedeceu, voltou e desembarcou o sinistro algumas quadras abaixo. Na descida, deu carona a uma moradora que tinha saído à rua para avisar sobre a presença do caveirão. "Vi vocês passando e tentei avisar. Se o caveirão pega você com aquele um, tava enroscado. O homem é do movimento."
O motorista desceu aliviado e se sentindo importante. Tinha levado um graúdo, o que lhe garante moral e faz presença no ponto. Tratar bem os bandidos é importante, doutor, ele explicava, enquanto eu pagava a corrida. Outro dia peguei dois e um deles disse que estava me reconhecendo. Na hora de descer, pagou e me avisou. "Ia meter uma bronca contigo, mas como você é maneiro, vou te liberar." Tratar bem os bandidos garante a segurança.

quarta-feira, agosto 30, 2006

A dor


Sentada na calçada fria da Cinelândia, com as pernas esticadas, ela confortava o filho morto no colo. Segurava a cabeça de um corpo todo ensangüentado com os braços em concha, exatamente como fazia quando o embalva ainda bebê. Seu rosto, no entanto, estava longe da luz radiante do afeto. O semblante carregado expressava a incompreensão, o ódio pelo mundo que acabara de matar seu filho com dois tiros pelas costas. Uma pietà trágica, sem piedade divina, apenas uma dor surda que nem Michelângelo seria capaz esculpir, jamais; iluminada por um misto de amarelo e vermelho, luzes da noite suja do centro carioca e do giroflex da viatura policial; exposta no altar da primeira página de um jornal, catedral moderna da sociedade midiática. Foi uma das cenas mais fortes e poéticas que já vi impressa, e foi captada pelo fotógrafo Marcelo Carnaval. Quem quiser conferir uma versão dela (não é exatamente a que saiu na primeira página), pode usar o link do título deste post.

domingo, agosto 27, 2006

A mudinha que sabia falar

Essa foi contada por uma amiga. E infelizmente é real.

Minha amiga chega numa favela carioca para entrevistar algumas mulheres para sua pesquisa. Numa das casas, a moça que abre a porta avisa que a dona da casa é muda. "Bem, então não dá pra fazer a entrevista..." "Entre, moça, que ela é muda mas fala..." "Muda mas fala?" Minha amiga entrou pra ver.

E não é que a mudinha falava? Super articulada, ainda por cima. Foi logo explicando sua história. Há muitos anos, depois de uma decepção amorosa, teve uma espécie de bloqueio psicológico e parou de falar. Entrou então numa série de programas de apoio a surdos-mudos, conquistou direitos especiais exclusivos a esse público, aprendeu a língua dos sinais e, o mais importante, encontrou um grupo onde ela se sentia igual a todo mundo, totalmente incluída.

Pouco tempo depois o bloqueio passou e a mudinha percebeu que não havia nada de errado com a sua voz. O que deveria ser uma feliz descoberta foi recebido por ela com medo e tristeza. Deixando de ser muda, deixaria também de participar de todos aqueles programas e encontros, perderia os direitos que havia conquistado e seria excluída da única comunidade onde ela até hoje teve um espaço.

Foi assim que a moça resolveu permanecer calada. Da porta da rua pra fora, ninguém ouve sua voz. Fala apenas em casa, com a família. E com as raras visitas que, como minha amiga pesquisadora, vão desavisadamente bater à sua porta para ouvir o que ela tem a dizer sobre o mundo (só pra registrar, suas respostas à pesquisa foram das mais consistentes e relevantes).

Ao se despedir, ela confessa: "Meu sonho é ir embora para o Tocantins. Lá, vou conseguir trabalho usando o que aprendi de linguagem de sinais. Ninguém vai me conhecer e eu nunca mais vou precisar falar."

Adoraria que fosse, mas juro que não é ficção. Aconteceu outro dia, numa favela da zona Oeste do Rio. Fiquei pensando na história por vários dias. Que país é esse onde uma pessoa precisa se fazer de muda para ser uma cidadã de direitos, calar-se para que sua voz seja ouvida, excluir-se para se sentir incluída, isolar-se para encontrar um espaço na sociedade? Não bastam as condições de vida e a falta de oportunidades a que está sujeita para que ela mereça nossa atenção?

terça-feira, agosto 22, 2006

Olhar estrangeiro

Na semana passada, na quinta, conheci um casal de portugueses que há quatro meses mora no Brasil. A moça se diz mais acostumada agora. No início, estava um pouco acuada, sentia-se muito estrangeira. Evitava até falar nos lugares públicos. Não queria denunciar sua origem. Medo de virar alvo de bandidos só por ser estrangeira.
A conversa dá voltas na mesa e agora é o rapaz a conversar comigo. E o que está a achar do Rio? Tem sítios muito bonitos, é um excelente lugar, apesar de tudo. É uma pena mesmo. Pena não, é uma vergonha, corrigiu-me ele.
Não é mera semântica. Como criador do idioma que falamos, ele foi preciso. A violência do Rio não é algo que se deva lamentar, como se fatalidade fosse, impossível de ser solucionada. A violência do Rio é uma vergonha mesmo, fruto que é da nossa falta de vontade política para acabar com ela.
Esse diálogo aconteceu na mesma semana em que um turista, por coincidência também português, foi assassinado nas areias de Copacabana. O assassino esfaqueou o rapaz de 19 anos quando tentava roubar-lhe a mochila.
O crime chocou a cidade - mais pelo prejuízo à imagem do Rio no exterior, menos pela vida do turista. (Afinal, o que é uma juventude desperdiçada numa terra onde tanta gente morre todos os dias?)
O homem que há seis anos responde por alcaide do balneário foi aos jornais tranquilizar o povo: Em Nova York também morrem turistas. Então, tudo certo. Estamos apenas a seguir tendências primeiro-mundistas...

domingo, agosto 20, 2006

Central do Brasil - Parte I: O Brasil da Central

Há duas semanas comecei a trabalhar em Nova Iguaçu. Conhece Engenho de Dentro? Fica depois. Deodoro? Depois ainda. Belford Roxo? Um pouquinho mais pra frente... Nova Iguaçu fica a exatos 50 minutos de trem da Central do Brasil, no meião da Baixada Fluminense. Ir pra lá de trem tem sido pra mim uma oportunidade maravilhosa de conhecer um Brasil novo que eu não via daqui da Ilha da Fantasia: o Brasil da Central.

O Brasil da Central acorda cedo. Às 7h30 da manhã os trens já chegam bombando no centro do Rio, trazendo os milhares de faxineiras/os, vendedores/as, cozinheiras/os e garçons/etes que vem limpar, abastecer, alimentar e servir o Brasil da Zona Sul.

O Brasil da Central, por mais que se pense o contrário, adora ler jornal. Expresso, Meia-hora e outros tablóides sensacionalistas que a cada dia trazem na capa uma parte do corpo humano: uma cabeça, uma perna esmigalhada, um pé detonado... Tudo empapado de muito sangue.

O Brasil da Central mata a sede com Coca-Cola e Guaraviton (uma bebida enjoativa com gosto de Tuti-fruti e xarope) e forra o estômago com amendoim e salgadinho de pacote. Depois adoça a boca com jujuba e paçoquinha. Tudo no esquema delivery, entregue dentro do vagão pelo exército de camelôs que perambulam pelos trens.

O Brasil da Central não conhece muito bem essa história de meio-ambiente. Joga a latinha de Coca-Cola e o copinho de Guaraviton, junto com o pacote do amendoim, do salgadinho, da jujuba e da paçoquinha, pela janela do trem. Mesmo tendo pelo menos 4 lixeiras em cada vagão.

O Brasil da Central é solidário. Ajuda o pessoal que vem pedir dinheiro pro Lar de não sei das quantas. Os ex-viciados que vêm arrecadar dinheiro para a clínica de recuperação. A cigana (bem gordinha) que diz que a família passa fome.

O Brasil da Central tem muita fé. O universitário traz a Biblia pra ler no caminho; o pastor prega, canta e faz teatro no trem, tentando levar Jesus ao coração das ovelhas desgarradas que, como eu, olham com jeito de infiel.

Mas o que mais me chamou a atenção foi o embarque no trem da volta, já lá pelas seis da tarde. Eu chegava na Central e, conforme meu trem ia parando, uma multidão colava na porta da direita, loucos pra voltar pra casa. Batiam no vidro e gritavam: aêêêêêêê. A porta da esquerda abriu primeiro, e eu saí rapidinho pela plataforma vazia. No minuto seguinte abriram a porta da direita. Deus do Céu, nunca vi uma coisa dessas... A galera invadiu com tudo, um pulando por cima do outro para conseguir um assento. Precisa ver a alegria dos vencedores... Sorriso de privilegiado... Afortunado entre os desafortunados... Mesmo que a ilusão dure apenas 50 minutos.

É essa a rotina do Brasil da Central. Um Brasil que come lixo, bebe lixo e lê lixo. Mas que nem por isso perde a fé... E continua acordando cedo todos os dias e dando um duro danado para conseguir um lugarzinho ao sol nesse trem superlotado que chamam de progresso...

segunda-feira, agosto 14, 2006

Praia e sol, Maracanã futebol...

Domingo carioca. Em pleno inverno, temperatura de 35ºC, praia lotada, mar calmo... E água nem estava tão gelada.
No sol da manhã, partida de vôlei na praia de Ipanema, em frente à Rua Vinicius de Morais. Já é sagrado, todo domingo rola um vôlei sem compromisso. Puro lazer.
No sol da tarde, a sombra da cobertura das arquibancadas do Maracanã, onde o Verdão deu show sobre o inexpressivo Botafogo. O Palmeiras venceu por 3 a 1, com atuação de gala do atacante Enilton.
Instituições cariocas
Cerca de 7.000 pessoas pagaram entrada para assitir ao espetáculo no templo do futebol, eternizado por Jorge Ben (quando ainda não era Jor) na música de onde emprestei o título da postagem. O Maraca, como é carinhosamente chamado, é uma instituição tão carioca quanto a praia (não só no domingo).


Quanto ao vôlei, há controvérsias. Alguns cariocas dizem que é coisa de paulista. Como todas as redes estão lotadas, deve ter muito paulista por estas bandas.
Aliás, não é tão fácil de conseguir uma rede. Os postes na areia têm donos: pessoas que pediram licença à Prefeitura para armar redes. Para jogar, é preciso conhecer alguém.
Eu comecei a jogar numa rede emprestada por um colega do trabalho. Aos poucos, ele deixou de aparecer e nós continuamos indo lá na cara-de-pau. O malandro da quadra ao lado nos emprestava a chave da bomba d'água - onde fica guardada a rede. Até o dia em que decidiu dificultar.
Ficamos por ali sem rede, meio bolados, e depois de um tempo ele chamou um dos nossos amigos no canto. Não que não quisesse nos ajudar, veja bem, mas essa coisa de emprestar a chave e tal. Ele nos deixaria jogar até 1 da tarde todos os domingos. Bastava dar uma ajudinha, coisa de umas 20 pratas estava bom.
Negócio fechado. Honrando mais uma instituição carioca, o malandro vendia a solução para o problema que criara. Porque o jeitinho pode até ser brasileiro, mas com certeza nasceu no Rio de Janeiro...

sexta-feira, agosto 04, 2006

Corpo no asfalto

Esse eu não vi pessoalmente. Aconteceu longe da Ilha da Fantasia, na Avenida Brasil, altura do Caju, Zona Norte do Rio. A imagem me chamou a atenção no alto da primeira página do maior jornal carioca. Espaço nobre porque quem sangrava debaixo do saco plástico era o desembargador José Maria de Mello Porto, do Tribunal Regional do Trabalho.
Mello Porto encontrou a morte na carona de um Audi prata, quando ia para casa na Barra da Tijuca, com um procurador federal aposentado, cujo nome não foi divulgado. (Por que será que autoridades policiais e jornalistas sempre preservam vítimas com vários sobrenomes e contas bancárias? Quando a estuprada é pobre sai com nome, sobrenome e, se bobear, até foto. Mas essa é outra discussão, que não tem lugar neste Audi.)
Os dois trafegavam pela Avenida Brasil quando oito homens armados os interceptaram com dois carros na altura da Favela Parque Alegria. Versões conflitantes dizem que Mello Porto teria descido atirando com sua pistola Glock. Por isso morreu. O amigo, que também estava armado, não reagiu e sobreviveu. Os bandidos acabaram fugindo apenas com a Glock.
O desembargador era primo do ex-presidente Fernando Collor e andou envolvido em suspeitas de roubalheira quando presida o TRT do Rio, nos anos 90. Houve quem levantasse a suspeita de execução, prontamente afastada por seus pares, todos também com vários sobrenomes, que aproveitaram para dar aquelas velhas declarações: "viramos reféns da violência", "quem sai de casa não sabe se volta", blá, blá, blá...
Só para informação dos togados, todos os dias morrem assassinadas, em média, 9 pessoas na cidade do Rio de Janeiro (antes que me acusem de bairrismo, em São Paulo, são 16). Esse dado não inclui a Baixada Fluminense.
A diferença é que o desembargador Mello Porto era importante. Mereceu uma lona azul enorme, que lhe cobria com folga o corpo. O outro cadáver que encontrei na Cidade Nova no início de julho (leia Atrações da Cidade Maravilhosa) estava mal coberto por um saco de lixo verde da Conlurb, com o pé negro, descalço, de fora. Também, nem sobrenome tinha.
Em comum entre os dois, apenas o velho pé de Havaiana, usado como peso para impedir o saco de avoar...

segunda-feira, julho 31, 2006

Sobre riquezas e memórias

A menina rasga e envelope e o aroma adocicado invade o ar. Vem com cheiro de infância. Muita coisa mudou na Varig, mas os lencinhos umidecidos continuam os mesmos. Quase posso ver o envelope azul escuro, de bordas brancas, com uma estrela também branca de oito pontas estampada bem no meio. Meu pai os trazia para mim e meus irmãos a cada nova viagem.
O cheiro da infância despertar nostalgias pouco antes da decolagem rumo ao Rio. Foi a mesma Varig quem me levou pela primeira vez à Cidade Maravilhosa, quando eu tinha 5 anos. Num domingo de inverno vi São Paulo entortar na janela do Elektra. Achei que o avião ia cair, mas não queria preocupar meu pai contando isso a ele. Meu segredo durou pouco, porque ele logo me tranquilizou. Era apenas fazendo uma curva.
Eu ia na janela, meu pai no meio e no outro canto o meu avô. A viagem, a minha primeira num avião, era um sonho do meu avô. Homem simples nascido na roça, ele criara oito filhos com a raça dos imigrantes italianos de que descendia. Meu pai crescera ouvindo-o dizer que não queria morrer sem voar. E naquele dia embarcamos, ele aos 75 anos, no nosso primeiro avião.
No Rio, o roteiro básico dos turistas de um dia. Bondinho para o Pão de Açúcar e visita ao Cristo. Lembro-me de que o bondinho parecia uma gigantesca bolha envidraçada de onde eu avistava a cidade lá embaixo. Não sei se foi criação da minha imaginação, mas lembro de como meu pai me erguia para olhar por uma abertura no teto. Será que existia tão abertura? Não sei. O Pão de Açúcar me parecia muito alto, naquele tempo e só voltei ao cartão postal mais uma vez, 20 anos depois. Pareceu-me bem mais baixo e não me lembro de ter procurado a tal janela no teto.
Do Cristo, trouxe na lembrança os personagens gigantes de Walt Disney que tocavam numa banda, especialmente o Pateta, o Dumbo e o Mickey. Pobres músicos, hoje eu sei, suando (literalmente) a pelúcia da fantasia para ganhar algum dinheiro.
Viajar de avião no Brasil daquele tempo não era tão fácil como hoje. Embora fosse o mais promissor entre os irmãos, meu pai estava longe da riqueza. Mesmo assim, ele realizou o sonho do meu avô, que morreria seis anos depois. Na minha primeira visita ao Rio, meu pai me ensinou, provavelmente sem notar, que a vida pode ser boa quando se acumula riquezas. Mas é muito melhor quando a usamos para acumular memórias.

domingo, julho 30, 2006

Santa de portas abertas


Ontem teve Santa de Portas Abertas, o dia em que todos os artistas de Santa Tereza abrem as portas de suas casas e ateliês. É meio esquisito entender que, num mundo em que as pessoas têm cada vez mais medo dos estranhos, e as casas mais medo da rua, ainda possa existir um bairro que abra as portas a gente totalmente desconhecida.

Até os apartamentos entraram no roteiro. “O que é que tem lá?”, pergunto eu ao porteiro de um prédio onde tem uma bandeirinha indicando que ali tem porta aberta. “Diz que é pintura a óleo. Acho que é óleo, né? Não entendo bem desse negócio não”, ele responde, apontando o caminho para o elevador. Subimos, olhamos as aquarelas (não, não era óleo...) e, da janela da moça, ficamos observando o zanzar das pessoas pelas ruas de Santa. Um quê de festival, de quermesse, de carnaval. Como se, com o movimento, o bairro ganhasse alma.

Pra quem não conhece, Santa Tereza está longe de ser um exemplo de tranqüilidade. Fica grudada no centro do Rio e está rodeada por favelas. Volta e meia tem caso de assalto por lá. Mas ainda assim os moradores mostram que não se rendem e que querem, muito pelo contrário, resgatar o velho e bom espírito da vila do interior, onde o vizinho batia na porta do outro para pedir açúcar, para oferecer bolo, para pedir que o outro desse uma olhadinha na porta enquanto ele descia até a padaria. Acho que portões - e vizinhos - abertos é o que dá alma a um bairro.

quinta-feira, julho 27, 2006

A casa da Lagoa vai à casa do Chapéu

Essa semana tive a oportunidade de conhecer o novo endereço dos amigos da baronesa (apresentados no post anterior). Foi uma verdadeira procissão da casa da Lagoa à casa do Chapéu. Na trupe estavam técnicos da ONU, da Caixa, do Sesc e de uma construtora, que vieram da Ilha da Fantasia conhecer outra ilha separada da nossa por uns quatro túneis e vários viadutos: Rocinha II, uma favela no subúrbio de Cidade de Deus que sonha em ser Rocinha (dá pra imaginar?). O motivo da visita era um projeto habitacional que deve ser implantado ali até o início dos jogos Panamericanos, que vão acontecer ali do lado, a menos de 1km.

E então chega na casa do Chapéu a procissão da casa da Lagoa. Vai passando pelos becos, desviando dos porcos e dos filetes de esgoto. “Pisa na 'táuba', dona!”, ensina um dos anfitriões, apontando para um caminho feito de pedaços de madeira e papelão. Perfeito para proteger os tênis da lagoa da sujeira do brejo.

Passamos por uma adolescente de pés descalços e unhas (do pé) pintadas de roxo. Ela explica: “Pintei agora, não quero botar o chinelo para não estragar”. Mais adiante, uma menina de uns cinco anos aparece na porta do barraco falando no celular. Por um momento eu penso que o aparelho deve ser de brinquedo e que ela finge falar para se exibir para a procissão. Pensando bem, não sei qual dos casos é pior.

A procissão segue, embalada pelo som alto de música pop americana que vem das casas. Olho para trás e vejo que a procissão está agora bem grande, com as gentes da casa do Chapéu seguindo as gentes das casas da Lagoa, como que esperando para ver o milagre que elas vieram trazer dessa vez. Ou simplesmente para ver as garotas de Ipanema (éramos 4) passando cheias de graça, como no comentário malicioso de um garoto: “Nossa, quanta gatinha... Essa parada de eleição é uma beleza mesmo...”, disse ele, mostrando que visita da zona Sul, só em época de campanha.

A procissão se vai, deixando um gostinho de quero-mais na boca das gentes das casas do Chapéu. Será que dessa vez o milagre vem?

quarta-feira, julho 19, 2006

Os amigos da baronesa

Nos anos 60, as casas da lagoa eram muito mais numerosas. Pelo menos outros 10 mil vizinhos moravam por aqui, na encosta do morro onde fica hoje o Parque da Catacumba. Dizem que tudo começou no início do século XX, quando a baronesa da Lagoa Rodrigo de Freitas deixou suas terras para os ex-escravos.

Com o tempo, ex-escravo foi virando novo pobre, e as terras da baronesa foram virando favela. Para quem quiser ver uma foto daquela época, tem uma ótima na página do Zé Lobato no Flickr: flickr.com/photos/ze_lobato/149803889/

E pra quem quiser ler mais sobre a história da favela da Catacumba: http://www.favelatemmemoria.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/

O fato é que em 1970 o governo decidiu que os amigos da baronesa eram pobres demais para terem o privilégio da vista para a lagoa. Passou o rodo na área, mandou a galera pra casa do chapéu e enfeitou aquele canto da lagoa com prédios de luxo.

O plano de trocar as casas da lagoa pelas casas do chapéu parecia perfeito. Remover (detesto esse termo) os moradores e colocá-los em conjuntos habitacionais construídos na zona Oeste, que na época era um total vazio. Batizar com um nome bonito (tipo... Cidade de Deus?) e pronto! Golpe de mestre.

Só faltou lembrar de um detalhe: para viver, aquelas pessoas precisavam mais do que casas; precisavam de trabalho, o que obviamente não existia na área das casas do chapéu – assim como também não existia infra-estrutura para que a região prosperasse, nem transporte para trazer os trabalhadores até seus antigos empregos na zona Sul. Taí o resultado: Cidade de Deus virou um dos maiores desastres sociais do Rio de Janeiro e um dos maiores quartéis do tráfico de drogas.

terça-feira, julho 18, 2006

A árvore de Natal da Lagoa

Do outro lado da lagoa fica a Rocinha. A favela veio subindo lá do lado de São Conrado e acabou descendo pelo lado de cá do morro, invadindo a ilha da fantasia. Ninguém ousou segurar... Virou parte da paisagem. Mas sabe que tem gente que até gosta? Ouvi outro dia uma senhora poodle de sensibilidade aguçadíssima (típica da vizinhança) dizer que achava bonito ver aquelas luzinhas todas penduradas no morro quando a noite cai. “Parece árvore de Natal”. Que impressionante capacidade cognitiva, não?

Imagino sua casa. O jogo de luzes bem posicionadas no interior do salão envidraçado exibe para quem anda pela lagoa o bom-gosto na decoração e a intimidade da família, desfrutando a dolce vita da ilha da Fantasia. Da janela, a senhora poodle deve ter o privilégio de enxergar, a cada noite, a enorme árvore de Natal do lado. Crescendo a cada dia (que beleza, não?)...

A noite e a distância escondem os barracos, os esgotos, o emaranhado dos gatos (ligações irregulares de fios elétricos). Escondem também os meninos armados, as mulheres abandonadas, os negros de todas as cores e os paraíbas de todos os nordestes. Essas coisas desagradáveis de se ver... Ah, e daqui também não se ouvem os tiros nem as sirenes de polícia. Ficam só mesmo os pontinhos iluminados, ornando a lagoa como penduricalhos natalinos.

sexta-feira, julho 07, 2006

Atrações da Cidade Maravilhosa



Domingo de sol.
Céu azul e ar frio. Sob a proteção do braço direito do Redentor, a floresta nativa de Mata Atlântica esconde a casa do Parque Lage, uma deliciosa atração secreta da Cidade Maravilhosa. Construída em estilo eclético, revestida em cantaria e com um pátio central tomado por uma piscina de pedras, a mansão pertenceu a Henrique Lage, um excêntrico armador do século XIX. Os jardins foram projetados pelo paisagista inglês Jhon Tyndale, em 1840 e a propriedade foi tombada em 1957. O charme, porém, é a área da piscina. Dezenas de pessoas se aglomeram ali nas manhãs de domingo e trocam longas esperas pelo direito de pagar 15 reais por poucas fatias de pão caseiro, uma porção francesa de doce de abóbora, um suco e um café com leite. Vários estrangeiros tentam valer-se da ignorância da língua para assaltar mesas em débeis tentativas de furar a fila. São polidamente advertidos pela universitária que faz as vezes de garçonete descolada do lugar. O petit déjeuner é caro, a fila é grande, mas existe um certo ar europeu no lugar, um não sei que de Plaza Mayor madrileña, um charme de abóbodas sarracenas.

Segunda-feira nublada.
O ônibus frea em cima da curva no final da descida e despeja passageiros num quadrilátero cimentado a que chamam praça. Escondido ali perto, ao lado do complexo cruzamento de viadutos, um corpo mal coberto por sacos plásticos verdes da Comlurb sangra no asfalto. Um amontoado de lataria amarrotada, batida, ralada, nas cores azul e branco e com um luminoso no teto, faz as vezes de viatura da Polícia Militar. Um único soldado, fuzil no ombro e banha em luta com o colete à prova de balas, toma conta da cena na Cidade Nova, centro do Rio. Dezenas de pessoas trocam minutos ociosos pelo direito de olhar alguém que não conhecem e sobre quem nada sabem, a não ser que está morto, baleado e mal coberto por sacos de lixo que deixam um pé negro descalço de fora. Apenas mais um corpo. Outros oito apareceriam nas imediações no dia seguinte, denunciando uma guerra entre traficantes dos Morros de São Carlos e do Querosene, ambos no centro, longe demais para esperar pela proteção do braço esquerdo do Redentor.

Cadáver insepulto

Uma semana passou e o Rio de Janeiro continua discutindo em bares, ônibus, quitandas e assemelhados a banha de Ronaldo, a cinta-liga de Roberto Carlos e as orelhas longas de Parreira... Encomendei missa de 7º dia na Igreja de Nossa Senhora das Dores, avenida Paulo de Frontein, número 500. Quem sabe assim deixam descansar em paz a alma atormentada da Seleção...

segunda-feira, julho 03, 2006

Tiroteio na Rua México

No meio da reunião eu ouço tiros. Penso que é um carro velho fazendo estalos. É o mais próximo de um tiro que eu já tinha ouvido até hoje. "É bala", constata alguém cujo ouvido já está mais apurado. 20 segundos de olhares de condenação, outros 20 de resignação, e a reunião segue no papo sobre desenvolvimento econômico. Fico meio desconcentrada, com aquele barulho estalado latejando no meu sub-consciente.

A reunião acaba e encontramos um pequeno alvoroço na portaria. O barulho da ambulância é suspeito. Pergunto para um grupo de senhoras que parecem estar envolvidíssimas com a situação. "Um assalto a banco. Um tiroteio, uma vítima só". "Ladrão?". "Não, inocente. Passava de carro na hora errada, no lugar errado". A mesma esquina por onde eu passara momentos antes.

A ambulância vai embora e a confusão se desfaz. A vida segue seu curso na mesma normalidade. De volta ao escritório, me perguntam sobre a reunião. "Foi ótima", eu respondo. E só depois me lembro dos tiros. Deus do céu, será que eu também estou entrando no estado anestesiado em que a maioria vive por aqui? Por quanto tempo vai latejar na minha cabeça o próximo tiro?

domingo, julho 02, 2006

110 Rodoviária-Leblon

Sentada sobre a mala de barbie, com puxador e rodinhas, a menina conversa animada com a coleguinha. Uniforme branco e laranja da rede pública do Rio, cabelos de molinha à altura dos ombros, presos por um laço frouxo atrás, eriçados pelo vento da janela. Deve ter seus 7 anos, talvez mais. Lábios grossos, dentes à Gaúcho, ela se enquadra no que a sociologia de Pindorama convencionou chamar mestiço, ou pardo. A luz da manhã no rosto mostra que está mais pra branca do que negra. Fiquei ali observando a luz no olhar, o sorriso aberto, as mãos dançando no ar no mesmo ritmo frenético dos casos inaudíveis que contava. E imaginando quanto tempo vai demorar para que ela se transforme na adolescente sentada três bancos atrás, 16 anos no máximo, unhas roídas brilhando numa confusão de cores berrantes, sandália de dedo com 10 cm de sola, barriga lutando com a miniblusa que defintivamente não foi cortada para vestir o bebê de 6 ou 7 meses que se forma. Olhar perdido, embaçado, talvez a gravidez tenha chegado antes dos diplomas, dos empregos e das viagens com que a cabelos de molinhas ainda sonha... Em que momento da vida será que perdemos a inocência, a espontaneidade da cabelos de molinha? Essa não-preocupação com o que não devemos nos preocupar? O que será que podemos fazer para evitar que a cabelos de molinha troque os volteios animados de mão no ar pelo olhar embaçado? O quê?

Gente Numerada


Copa do Mundo é isso. Milhares de Ronaldinhos Gaúchos, Ronaldinhos Gorduchos e Adrianos desfilando nos bares da Lapa, nos calçadões de Ipanema, na ciclovia da Lagoa. De vez em quando um Kaká de camelô (afinal, ele é atleta da concorrência e não pode ter seu nome na camisa), mas nunca um Émerson, um Cafu. Dida, Lúcio e Juan, então, nem pensar. Não importa que salvem a retaguarda de todos os brasileiros com atuações de placa, nunca desfilam por lugar nenhum, além dos gramados de Alemanha. Mas será que a moça aí da foto quer mesmo ser o Zé Roberto? Estamos no Rio de Janeiro, me explica um amigo. Onde a mística da camisa 11 ainda é grande por causa de Romário.
Que espetáculo! No Rio, Romário ainda tem fãs! Copa do Mundo é isso.
E lá vai a legião de gente numerada, agredindo a paisagem com as cores berrantes. E aumentando os lucros da marca do escorpião. Just do it!

A pracinha das crianças e dos velhinhos


Hoje de manhã fomos tirar foto na lagoa. Fiquei um tempo sentada na pracinha das crianças, aquela onde o povo da Caras sempre consegue flagrar uma global em momentos "relax" ("fulaninha em jardineira Diesel, óculos Dior, bolsa Prada, com seu filho fulaninho em macaquinho Diesel kids, chupeta Dior kids etc etc).

Olhando além dos modelinhos etiquetados, a pracinha tem coisas bem mais interessantes. Dividida em duas partes (um parquinho e uma área com mesinhas do tio do coco), ela atrai, além das crianças e suas babás de branco, muitos velhinhos também com babás de branco. Eles não conseguem descer no escorregador nem brincar de gangorra, mas ficam ali, nos seus carrinhos de rodas grandes, aproveitando o sol e brincando com as mãos das babás. Como as crianças, não conseguem usar muito bem a voz e as palavras. Mas absorvem como ninguém o mundo em silêncio.

Engraçado como gerações tão distantes procuram os mesmos espaços. O que será que cada um busca ali? Fácil: buscam a alegria das coisas simples da vida. Como sentir o vento cachear o cabelo ou acompanhar o plano de vôo dos passarinhos. Daí fico pensando: a vida só pode ser mesmo cíclica. Ao final, a gente vai se aproximando mais e mais do que éramos quando nascemos. E resgatamos os superpoderes que nos fazem ver através das aparências e sentir além das emoções fugazes. A vida é uma ciranda, gente! E quando eu estiver velhinha quero que me coloquem no balanço!

Movimento pelo Tatu tropical


Quem nunca ouviu falar da misteriosa caverna, em São Tomé das Letras, ligada por um mítico túnel diretamente a Machu Pichu, a cidade sagrada dos Incas? Pois no Rio de Janeiro há um túnel mágico também, nada mítico, feito em concreto, que liga a vida real e dura dos brasileiros pobres à uma espécie de ilha da fantasia tropical.
O Túnel Rebouças, via expressa de tráfego intenso, separa as casas pobres de tijolos do Jornal Nacional das coberturas ensolaradas da novela das 8 (by Manoel Carlos).
Pra quem não conhece, o túnel começa num elevado cinza, passa sob o morro que serve de pedestal ao Redentor e desembarca no espelho d'água da Lagoa Rodrigo de Freitas, onde só falta o Tatu, aquele anãozinho que recepcionava os visitantes da Ilha da Fantasia no seriado brega norte-americano. No programa, os visitantes chegavam num hidroavião. Aqui, chegam de carro vindos da Linha Vermelha que corta a Baixada Fluminense... Quite a view!
Como novo morador deste paraíso natural de contrastes sociais, decidi contribuir com a paisagem urbana carioca e iniciei um movimento pela construção de uma estátua do anãozinho Tatu, mas em proporções agigantadas, a ser instalada logo na saída do túnel que separa base e pico da pirâmide de renda do IBGE. Um imenso anão gigante - se é que isso é possível -, uma espécie de Tatu Tropical, a nos lembrar, assim que saímos do túnel, que estamos entrando na Ilha da Fantasia das elites brasileiras.