quarta-feira, agosto 30, 2006

A dor


Sentada na calçada fria da Cinelândia, com as pernas esticadas, ela confortava o filho morto no colo. Segurava a cabeça de um corpo todo ensangüentado com os braços em concha, exatamente como fazia quando o embalva ainda bebê. Seu rosto, no entanto, estava longe da luz radiante do afeto. O semblante carregado expressava a incompreensão, o ódio pelo mundo que acabara de matar seu filho com dois tiros pelas costas. Uma pietà trágica, sem piedade divina, apenas uma dor surda que nem Michelângelo seria capaz esculpir, jamais; iluminada por um misto de amarelo e vermelho, luzes da noite suja do centro carioca e do giroflex da viatura policial; exposta no altar da primeira página de um jornal, catedral moderna da sociedade midiática. Foi uma das cenas mais fortes e poéticas que já vi impressa, e foi captada pelo fotógrafo Marcelo Carnaval. Quem quiser conferir uma versão dela (não é exatamente a que saiu na primeira página), pode usar o link do título deste post.

domingo, agosto 27, 2006

A mudinha que sabia falar

Essa foi contada por uma amiga. E infelizmente é real.

Minha amiga chega numa favela carioca para entrevistar algumas mulheres para sua pesquisa. Numa das casas, a moça que abre a porta avisa que a dona da casa é muda. "Bem, então não dá pra fazer a entrevista..." "Entre, moça, que ela é muda mas fala..." "Muda mas fala?" Minha amiga entrou pra ver.

E não é que a mudinha falava? Super articulada, ainda por cima. Foi logo explicando sua história. Há muitos anos, depois de uma decepção amorosa, teve uma espécie de bloqueio psicológico e parou de falar. Entrou então numa série de programas de apoio a surdos-mudos, conquistou direitos especiais exclusivos a esse público, aprendeu a língua dos sinais e, o mais importante, encontrou um grupo onde ela se sentia igual a todo mundo, totalmente incluída.

Pouco tempo depois o bloqueio passou e a mudinha percebeu que não havia nada de errado com a sua voz. O que deveria ser uma feliz descoberta foi recebido por ela com medo e tristeza. Deixando de ser muda, deixaria também de participar de todos aqueles programas e encontros, perderia os direitos que havia conquistado e seria excluída da única comunidade onde ela até hoje teve um espaço.

Foi assim que a moça resolveu permanecer calada. Da porta da rua pra fora, ninguém ouve sua voz. Fala apenas em casa, com a família. E com as raras visitas que, como minha amiga pesquisadora, vão desavisadamente bater à sua porta para ouvir o que ela tem a dizer sobre o mundo (só pra registrar, suas respostas à pesquisa foram das mais consistentes e relevantes).

Ao se despedir, ela confessa: "Meu sonho é ir embora para o Tocantins. Lá, vou conseguir trabalho usando o que aprendi de linguagem de sinais. Ninguém vai me conhecer e eu nunca mais vou precisar falar."

Adoraria que fosse, mas juro que não é ficção. Aconteceu outro dia, numa favela da zona Oeste do Rio. Fiquei pensando na história por vários dias. Que país é esse onde uma pessoa precisa se fazer de muda para ser uma cidadã de direitos, calar-se para que sua voz seja ouvida, excluir-se para se sentir incluída, isolar-se para encontrar um espaço na sociedade? Não bastam as condições de vida e a falta de oportunidades a que está sujeita para que ela mereça nossa atenção?

terça-feira, agosto 22, 2006

Olhar estrangeiro

Na semana passada, na quinta, conheci um casal de portugueses que há quatro meses mora no Brasil. A moça se diz mais acostumada agora. No início, estava um pouco acuada, sentia-se muito estrangeira. Evitava até falar nos lugares públicos. Não queria denunciar sua origem. Medo de virar alvo de bandidos só por ser estrangeira.
A conversa dá voltas na mesa e agora é o rapaz a conversar comigo. E o que está a achar do Rio? Tem sítios muito bonitos, é um excelente lugar, apesar de tudo. É uma pena mesmo. Pena não, é uma vergonha, corrigiu-me ele.
Não é mera semântica. Como criador do idioma que falamos, ele foi preciso. A violência do Rio não é algo que se deva lamentar, como se fatalidade fosse, impossível de ser solucionada. A violência do Rio é uma vergonha mesmo, fruto que é da nossa falta de vontade política para acabar com ela.
Esse diálogo aconteceu na mesma semana em que um turista, por coincidência também português, foi assassinado nas areias de Copacabana. O assassino esfaqueou o rapaz de 19 anos quando tentava roubar-lhe a mochila.
O crime chocou a cidade - mais pelo prejuízo à imagem do Rio no exterior, menos pela vida do turista. (Afinal, o que é uma juventude desperdiçada numa terra onde tanta gente morre todos os dias?)
O homem que há seis anos responde por alcaide do balneário foi aos jornais tranquilizar o povo: Em Nova York também morrem turistas. Então, tudo certo. Estamos apenas a seguir tendências primeiro-mundistas...

domingo, agosto 20, 2006

Central do Brasil - Parte I: O Brasil da Central

Há duas semanas comecei a trabalhar em Nova Iguaçu. Conhece Engenho de Dentro? Fica depois. Deodoro? Depois ainda. Belford Roxo? Um pouquinho mais pra frente... Nova Iguaçu fica a exatos 50 minutos de trem da Central do Brasil, no meião da Baixada Fluminense. Ir pra lá de trem tem sido pra mim uma oportunidade maravilhosa de conhecer um Brasil novo que eu não via daqui da Ilha da Fantasia: o Brasil da Central.

O Brasil da Central acorda cedo. Às 7h30 da manhã os trens já chegam bombando no centro do Rio, trazendo os milhares de faxineiras/os, vendedores/as, cozinheiras/os e garçons/etes que vem limpar, abastecer, alimentar e servir o Brasil da Zona Sul.

O Brasil da Central, por mais que se pense o contrário, adora ler jornal. Expresso, Meia-hora e outros tablóides sensacionalistas que a cada dia trazem na capa uma parte do corpo humano: uma cabeça, uma perna esmigalhada, um pé detonado... Tudo empapado de muito sangue.

O Brasil da Central mata a sede com Coca-Cola e Guaraviton (uma bebida enjoativa com gosto de Tuti-fruti e xarope) e forra o estômago com amendoim e salgadinho de pacote. Depois adoça a boca com jujuba e paçoquinha. Tudo no esquema delivery, entregue dentro do vagão pelo exército de camelôs que perambulam pelos trens.

O Brasil da Central não conhece muito bem essa história de meio-ambiente. Joga a latinha de Coca-Cola e o copinho de Guaraviton, junto com o pacote do amendoim, do salgadinho, da jujuba e da paçoquinha, pela janela do trem. Mesmo tendo pelo menos 4 lixeiras em cada vagão.

O Brasil da Central é solidário. Ajuda o pessoal que vem pedir dinheiro pro Lar de não sei das quantas. Os ex-viciados que vêm arrecadar dinheiro para a clínica de recuperação. A cigana (bem gordinha) que diz que a família passa fome.

O Brasil da Central tem muita fé. O universitário traz a Biblia pra ler no caminho; o pastor prega, canta e faz teatro no trem, tentando levar Jesus ao coração das ovelhas desgarradas que, como eu, olham com jeito de infiel.

Mas o que mais me chamou a atenção foi o embarque no trem da volta, já lá pelas seis da tarde. Eu chegava na Central e, conforme meu trem ia parando, uma multidão colava na porta da direita, loucos pra voltar pra casa. Batiam no vidro e gritavam: aêêêêêêê. A porta da esquerda abriu primeiro, e eu saí rapidinho pela plataforma vazia. No minuto seguinte abriram a porta da direita. Deus do Céu, nunca vi uma coisa dessas... A galera invadiu com tudo, um pulando por cima do outro para conseguir um assento. Precisa ver a alegria dos vencedores... Sorriso de privilegiado... Afortunado entre os desafortunados... Mesmo que a ilusão dure apenas 50 minutos.

É essa a rotina do Brasil da Central. Um Brasil que come lixo, bebe lixo e lê lixo. Mas que nem por isso perde a fé... E continua acordando cedo todos os dias e dando um duro danado para conseguir um lugarzinho ao sol nesse trem superlotado que chamam de progresso...

segunda-feira, agosto 14, 2006

Praia e sol, Maracanã futebol...

Domingo carioca. Em pleno inverno, temperatura de 35ºC, praia lotada, mar calmo... E água nem estava tão gelada.
No sol da manhã, partida de vôlei na praia de Ipanema, em frente à Rua Vinicius de Morais. Já é sagrado, todo domingo rola um vôlei sem compromisso. Puro lazer.
No sol da tarde, a sombra da cobertura das arquibancadas do Maracanã, onde o Verdão deu show sobre o inexpressivo Botafogo. O Palmeiras venceu por 3 a 1, com atuação de gala do atacante Enilton.
Instituições cariocas
Cerca de 7.000 pessoas pagaram entrada para assitir ao espetáculo no templo do futebol, eternizado por Jorge Ben (quando ainda não era Jor) na música de onde emprestei o título da postagem. O Maraca, como é carinhosamente chamado, é uma instituição tão carioca quanto a praia (não só no domingo).


Quanto ao vôlei, há controvérsias. Alguns cariocas dizem que é coisa de paulista. Como todas as redes estão lotadas, deve ter muito paulista por estas bandas.
Aliás, não é tão fácil de conseguir uma rede. Os postes na areia têm donos: pessoas que pediram licença à Prefeitura para armar redes. Para jogar, é preciso conhecer alguém.
Eu comecei a jogar numa rede emprestada por um colega do trabalho. Aos poucos, ele deixou de aparecer e nós continuamos indo lá na cara-de-pau. O malandro da quadra ao lado nos emprestava a chave da bomba d'água - onde fica guardada a rede. Até o dia em que decidiu dificultar.
Ficamos por ali sem rede, meio bolados, e depois de um tempo ele chamou um dos nossos amigos no canto. Não que não quisesse nos ajudar, veja bem, mas essa coisa de emprestar a chave e tal. Ele nos deixaria jogar até 1 da tarde todos os domingos. Bastava dar uma ajudinha, coisa de umas 20 pratas estava bom.
Negócio fechado. Honrando mais uma instituição carioca, o malandro vendia a solução para o problema que criara. Porque o jeitinho pode até ser brasileiro, mas com certeza nasceu no Rio de Janeiro...

sexta-feira, agosto 04, 2006

Corpo no asfalto

Esse eu não vi pessoalmente. Aconteceu longe da Ilha da Fantasia, na Avenida Brasil, altura do Caju, Zona Norte do Rio. A imagem me chamou a atenção no alto da primeira página do maior jornal carioca. Espaço nobre porque quem sangrava debaixo do saco plástico era o desembargador José Maria de Mello Porto, do Tribunal Regional do Trabalho.
Mello Porto encontrou a morte na carona de um Audi prata, quando ia para casa na Barra da Tijuca, com um procurador federal aposentado, cujo nome não foi divulgado. (Por que será que autoridades policiais e jornalistas sempre preservam vítimas com vários sobrenomes e contas bancárias? Quando a estuprada é pobre sai com nome, sobrenome e, se bobear, até foto. Mas essa é outra discussão, que não tem lugar neste Audi.)
Os dois trafegavam pela Avenida Brasil quando oito homens armados os interceptaram com dois carros na altura da Favela Parque Alegria. Versões conflitantes dizem que Mello Porto teria descido atirando com sua pistola Glock. Por isso morreu. O amigo, que também estava armado, não reagiu e sobreviveu. Os bandidos acabaram fugindo apenas com a Glock.
O desembargador era primo do ex-presidente Fernando Collor e andou envolvido em suspeitas de roubalheira quando presida o TRT do Rio, nos anos 90. Houve quem levantasse a suspeita de execução, prontamente afastada por seus pares, todos também com vários sobrenomes, que aproveitaram para dar aquelas velhas declarações: "viramos reféns da violência", "quem sai de casa não sabe se volta", blá, blá, blá...
Só para informação dos togados, todos os dias morrem assassinadas, em média, 9 pessoas na cidade do Rio de Janeiro (antes que me acusem de bairrismo, em São Paulo, são 16). Esse dado não inclui a Baixada Fluminense.
A diferença é que o desembargador Mello Porto era importante. Mereceu uma lona azul enorme, que lhe cobria com folga o corpo. O outro cadáver que encontrei na Cidade Nova no início de julho (leia Atrações da Cidade Maravilhosa) estava mal coberto por um saco de lixo verde da Conlurb, com o pé negro, descalço, de fora. Também, nem sobrenome tinha.
Em comum entre os dois, apenas o velho pé de Havaiana, usado como peso para impedir o saco de avoar...