quinta-feira, março 29, 2007

Flagrante social

Antes das oito da manhã, elas pintam a Fonte da Saudade de xadrez com seus uniformes de novela. Entediadas, algumas com cigarros acesos, passeiam cockers, bassets, poodles, schnauzers... Toda sorte de miniaturas caninas que certamente custam, em cuidados mensais (banhos, tosas, rações, medicamentos, vacinas e consultas veterinárias), mais do que o salário que elas recebem para lavar, passar, limpar, fazer cama, cozinhar e ainda levar o lulu ao banheiro logo cedo... É possível ainda que muitos desses patrões e patroas conversem mais com seus pets (naquela vozinha infatilóide irritante) do que com elas durante o dia. Mas pelo menos elas têm uma vantagem: podem ser abatidas do imposto de renda na maior democracia racial do mundo.

terça-feira, março 27, 2007

Passeio sonoro

Se vivo fosse e resolvesse passear por algumas quadras da rua nomeada para homenageá-lo, o que ouviria o Ouvidor?

Na quadra entre a 1º de Março e a Rua do Carmo:
- Misto mais um copo de refrigerante, só R$ 1,50...
(No carrinho da 'Rainha do Misto Quente', onde além de comer queijo com banana é possível converter VHS para DVD e fita k7 e lp para CD. Um adesivo ameaça os invejosos: "Sapo tem olho grande, mas vive na lama".)
- Eu fui arrebatado no Espírito no dia do Senhor, e ouvi detrás de mim uma grande voz, como de trombeta...
(Dos pregadores evangélicos, engravatados sob o sol da Guanabara, lendo o capítulo 1, versículo 10 do... Apocalipse, claro. Sempre o Apocalipse.)

Na quadra entre as ruas do Carmo e da Quitanda:
- Vale refeição, ticket restaurante, pago 86%...
(Na camiseta do homem gordo distribuindo panfletos.)
- Você que está precisando de dinheiro, não perca tempo. Na Mesquita o seu crédito já está aprovado, apenas à sua espera...
(Gritado no megafone por um homem vestido numa roupa de pierrô azul acetinada, com sapatilhas de Aladim brancas e turbante amarelo na cabeça.)

Na quadra seguinte, onde ele descobriria, depois de percorrê-la, que além de rua tem também a Travessa do Ouvidor a homenageá-lo:
- Dez é um real, um real. Você leva dez e só paga um real...
(Do vendedor de guloseimas, anunciando o pingo de leite, num carrinho onde também é possível comprar 40 balas por um real.)
- Carregador, baterias, chip e carcaça...
(Do vendedor de bugigangas para celular que negocia também aparelhos de origem suspeita.)
Finalmente, na esquina com Avenida Rio Branco, ele ouviria:
- Cinqüenta por um real...
(De um vendedor de biscoitos de sequilho, antes do sinal abrir e sua voz ser sufocada pelo ruído de centenas de carros e ônibus arrancando pela Rio Branco.)

Depois do passeio, o Ouvidor sairia com uma certeza. Sorte mesmo tiveram o Desvio do Mar (1568), Aleixo Manoel (1590) e Padre Homem da Costa (1659), cujos nomes um dia já batizaram a estreita rua de paralelepípedos, definitivamente batizada como do Ouvidor em 1780.

segunda-feira, março 26, 2007

O vilão que não estava no roteiro original

O roteiro era perfeito. Tinha emoção, com 40 mil pessoas enfileiradas na platéia, ansiosas pelo grande momento; tinha suspense, com o tempo passando rápido; tinha o herói, lutando pra vencer no final; tinha o clímax, dentro da área, de frente para o gol, aos 43 minutos do segundo tempo. Mas aí apareceu o vilão que não estava no roteiro original: o pé do goleiro Bruno, do Flamengo, que atendendo ao seu cacoete de defensor ficou pra trás, no meio do caminho entre Romário e o seu milésimo gol.
O Maracanã quase morreu do coração, mas não teve jeito. A festa do baixinho ficou pra depois.

quinta-feira, março 22, 2007

Instituições cariocas 5: Mate com limão


A notícia está nos jornais do dia. O Mate Leão, que há 96 anos mata a sede dos habitantes nos tórridos verões da Guanabara, foi vendido para a Coca-Cola. Agora, a gigante dos refrigerantes pretende ampliar a distribuição da bebida preferida dos cariocas para todo o território nacional.
Embora seja possível, hoje é bastante raro encontrar em outras cidades do Brasil o copinho de plástico laranja com a estampa de um leão no rótulo. Aqui, eles estão por toda a parte. Os cariocas consomem 60% de toda a produção das três fábricas da Leão Júnior, que faturou no ano passado R$ 156 milhões. É uma instituição carioca.
Além dos copinhos plásticos, nos sabores natural e diet, com ou sem limão, o mate também faz sucesso na praia, em sua versão do latão. Vendedores com jaleco laranja da marca circulam pela praia carregando dois latões de metal de 25 litros cada, um em cada ombro. Num deles, o mate; no outro, o limão com muito açúcar. Tudo bem gelado.
Você escolhe a proporção da mistura e, por R$ 2, toma um copão refrescante. Muita gente torce o nariz. O vendedor faz o mate em casa sabe-se lá com que água e também não há como averiguar a higiene da lata. Mas todos são obrigados a admitir: é gostos demais!

quarta-feira, março 21, 2007

Os mil gols do Baixinho

No Rio não se fala de outra coisa. De repente, a campanha de Romário pelo recorde de mil gols virou uma bandeira da cidade, unindo torcedores de todos os clubes. E não é pra menos.
Dentro de campo, Romário sempre foi um gênio. Ninguém pode negar. Independentemente da conta que se faça dos seus gols – sejam os mil de seus fãs, ou os 900 dos que tentam diminuir a marca –, o Baixinho já escreveu seu nome na história do futebol. Afinal, ninguém mais no mundo, além de Pelé e do alemão Gerd Müller, conseguiu chegar perto dos 900.
A marca do Baixinho, portanto, mostra mais uma vez a força do nosso futebol. Por isso, essa festa é de todos os brasileiros.
Escrevo isso com tranquilidade, pois Romário nunca fez meu tipo de ídolo. Polêmico e arrogante, às vezes até grosseiro, inventou aquelas camisetas ridículas com mensagens, que usava sob o uniforme nos anos 90 e exibia a cada gol marcado. Ídolo verdadeiro conquista empatia com o público pelas atitudes no dia-a-dia. De que adianta mal-tratar o próximo todos os dias e depois escrever mensagens na camiseta? Ayrton Senna, por exemplo, nunca precisou abrir o macacão para mandar recado.
Hoje, porém, Romário está mudado. Muita gente jamais teria tido coragem de abraçar com franqueza a causa dos portadores da Síndrome de Down, como ele fez desde o nascimento da filha Ivy. Essa atitude, um gol do Baixinho que não entra na lista, mas que talvez seja o mais especial de todos, mudou minha opinião a respeito dele. Por isso, e pelas alegrias que nos deus na grande área, ele merece ser reverenciado.

domingo, março 18, 2007

Plantão dos famintos

Todo fim de semana a história se repete. Como a lanchonete não abre e não tem nada por perto da Cidade Nova, os condenados ao plantão ficam sem ter o que comer o dia todo. A solução sempre foi apelar para os deliverys das redes de hamburgueres.
A novidade é que esta semana, ambas deixaram de entregar comida na região. A atendente informa que, devido ao grande número de assaltos, os entregadores não trazem mais comida no bairro. Segundo ela, os bandidos não levam dinheiro; pedem o lanche e, quando o motoqueiro chega, mostram a pistola em lugar de pagar o pedido.
Um colega sugeriu que explicássemos a ela que esses roubos acontecem na vizinhança, mas que nós, aqui na empresa, não roubamos ninguém. Eles podem entregar sossegados que pagamos nossos pedidos. Boa essa.
Claro que ninguém pensou em chamar a polícia. Nem nós, nem as redes de hambúrgueres. Vai ver ficaram com medo de os guardas pedirem um lanchinho de graça também.

sexta-feira, março 16, 2007

Cheiro de chuva...

Depois de 33 dias de seca, começaram a cair agora pouco uns pinguinhos de chuva no Rio de Janeiro... Finalmente. Não é nada forte, ainda, só uma chuvinha de leve. Mas o suficiente para fazer subir do chão aquele cheiro gostoso de chuva fresca na pedra quente.

segunda-feira, março 12, 2007

Lições da Floresta da Tijuca

A descrição choca logo na quinta palavra: "É a maior floresta artificial do mundo", diz o texto num site turístico. Artificial? Como assim? Estamos falando da Floresta da Tijuca, com seus 39 km² de extensão sobre a Serra da Carioca. Em outras palavras: todo aquele verde ancorado na paisagem da Zona Sul do Rio, sob os pés do Cristo Redentor, cobrindo o Morro Dois Irmãos, a Pedra da Gávea, a Pedra Bonita, o Pico da Tijuca...
O termo 'artificial' talvez não seja o mais correto, já que as espécimes de Mata Atlântica são verdadeiras. Mas o fato é que nem sempre a floresta foi assim. Descobri isso ontem, numa longa caminhada de 15 km pelo Parque Nacional e pelo caminho das Paineiras.
Para explicar a história, é preciso voltar ao Brasil colonial. A chegada da família Real Portuguessa ao Rio (199 anos completados no dia 8 de março) impulsionou o crescimento da cidade e os morros da Serra da Carioca começaram a ser desmatados. A madeira era usada como lenha e, em seu lugar, surgiram lavouras de café.
Todos os rios que abasteciam a cidade nasciam naquelas montanhas e o desmatamento indiscriminado reduziu drasticamente o fluxo de água. Como conseqüência, já no Império, a capital começou a sofrer estiagens. D. Pedro II ordenou, então, o reflorestamento do local, numa atitude pioneira no mundo.
As desapropriações das terras começaram em 1854 e o reflorestamento em 1861, sob o comando do Major Gomes Archer, primeiro administrador da Floresta, que trabalhava com seis escravos. O replantio era feito com espécimes nativas da Mata Atlântica. Em 13 anos, Archer e seus escravos (mais tarde a equipe incorporou 22 trabalhadores assalariados) plantaram 100 mil mudas. De 1874 a 1888, o Barão Gastão d'Escragnolle, segundo administrador da Floresta, introduziu mais 30 mil mudas e começou a transformar o local numa área de lazer. Quem caminha hoje pelas montanhas da Serra da Carioca não é capaz de encontrar diferenças para uma reserva original de Mata Atlântica. A paisagem tem cachoeiras, micos, tudo o que se espera encontrar numa floresta original.
Se você já chegou até aqui, deve estar se perguntando por que é que não coloquei uma foto sequer de toda esta exuberância. É simples. Fui impedido de fazer fotos. Pela violência. No dia anterior à minha visita, 40 pessoas foram assaltadas numa das trilhas do parque. E não foi a primeira vez este ano. Amedrontado, deixei a câmera em casa.
A Floresta da Tijuca é uma prova de que, com vontade política, é possível transformar uma realidade desfavorável e de que negligenciar os problemas não ajuda a resolvê-los. Se nossos governantes se inspirassem no estilo do velho imperador das barbas brancas, talvez vocês pudessem ver as fotos da floresta plantada por ele, em lugar de ler tantos posts sobre mortes e barbaridades, que surgem neste blog com mais freqüência do que eu gostaria.

sexta-feira, março 09, 2007

A banalização das balas perdidas

- Qual era o sonho da sua filha? - perguntou o repórter.
- Moço, quem mora no morro, não tem direito a sonho - respondeu a mãe.
Esse foi o lide de uma reportagem de O Globo desta semana, sobre a morte de Alana Ezequiel, 13 anos, vítima de uma bala perdida numa favela de Vila Isabel. Alana havia acabado de deixar a irmã menor, de 2 anos, numa creche, quando traficantes do Morro dos Macacos começaram a atirar contra o Caveirão, o carro blindado que a Polícia Militar do Rio usa para subir favelas. Os policiais revidaram e Alana ficou no meio do fogo cruzado. Uma bala de fuziu perfurou seus dois pulmões, fígado e a coluna.
A doméstica Edna Ezequiel, mãe de Alana, enterrou a filha no Cemitério do Caju, graças à ajuda da Santa Casa de Misericórdia, que pagou as despesas. No funeral de Alana não tinha governador nem secretário de Segurança Pública chorando. Talvez porque morrer de bala perdida, nesta cidade, já não seja considerado tão trágico quanto ser arrastado por sete quilômetros preso a um cinto de segurança, como sucedeu ao pequeno João Hélio. Segundo um levantamento do Fantástico, a cada dois dias um carioca é ferido por bala perdida. Das vítimas, 20% seriam crianças com menos de 13 anos. Os casos mais recentes:

* Adriele Medeiros Nobre, 9 anos, morta por bala perdida na Favela do Jacarezinho em novembro do ano passado;
* Jessé Veríssimo Arivaldo, 6 anos, morto por bala perdida em Vigário Geral no mesmo mês;
* Rennan da Costa Ribeiro, 3 anos, morto nos braços da avó durante um tiroteio em bandidos e PMs na Favela Nova Holanda, em outubro de 2006;

Cristo Redentor, braços abertos sobre a Guanabara, olhai por nós.

quinta-feira, março 01, 2007

Alguma coisa em comum

Tudo começou na Ilha de Serigipe, na Baía de Guanabara. Foi ali que corsários franceses fundaram a França Antártica, em 1555, de olho no lucrativo comércio de pau-brasil. Aliados aos índios tupinambá, guerreavam contra os portugueses que, a bem da verdade, só passavam de vez em quando por aqui.
Em 1560, o governador geral Mem de Sá resolveu tomar providências e enviou soldados sob o comando de seu sobrinho, Estácio de Sá, para expulsar os franceses. Começou a guerra que duraria sete anos. Em 1565, Estácio de Sá já havia recuperado parte das terras e fundou a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, no dia 1º de março. No local onde hoje fica a Urca, Estácio ergueu um fortim.
A guerra, porém, não estava terminada. Só acabaria quase dois anos depois, com a batalha final vencida pelos portugueses, no outeiro (que passou a se chamar da Glória). Era o dia 20 de janeiro de 1567, Dia de São Sebastião, que até hoje é o feriado da cidade (e não o dia 1º de março). Na batalha da Glória, Estácio de Sá foi ferido no rosto por uma flecha envenenada. Morreu um mês depois, em decorrência de infecção causada pelo veneno.
Essa história toda sobre a fundação da cidade talvez ajude a explicar por que me adaptei tão bem ao Rio de Janeiro, a ponto de todos os meus amigos dizerem que sou o paulista mais carioca que conhecem. Deve ser empatia de piscianos. Eu e o Rio comemoramos aniversário no mesmo dia. Ele é bem mais velho (406 anos a mais), mas o azar é só dele.