segunda-feira, dezembro 25, 2006

Noite feliz

O Natal sempre me despertou ambiguidades. Festa mais esperada da infância, se transformou na mais enfadonha durante os anos céticos da adolescência, para voltar a ser a mais esperada já na idade adulta, com a chegada das novas crianças da família.
Oscilando entre a tradição cristã e o consumismo capitalista predador em sua pior forma, o Natal me ensinou a mentir. O mito de Papai Noel, quando revelado, é prova chocante de que a mentira faz parte da vida e é praticada até pelos nossos pais, ídolos incontestes na tenra infância.
Essa descoberta me marcou tanto, aos seis anos de idade, que até hoje me lembro da cena. Um amiguinho me disse na escola que ele não existia. Eu duvidei. Questão levada adiante, a professora saiu-se com uma resposta alarmante.
- Pergunte à sua mãe.
Foi a primeira coisa que fiz, quando cheguei em casa. Minha mãe estava sentada à sua máquina de tricot, sob a luz amarela do quarto de costura, minha irmã mais velha - que já sabia da notícia -, assistia à tudo com ar de superioridade.
Ontem, ceia à mesa, o chester já sem uma coxa e com o peito fatiado, lembrei da história. Queria saber se a sensação de choque havia marcado o demais também. Alguns lembravam de como haviam recebido a notícia. Meu irmão viu suas ilusões morrerem na indiscrição de uma empregada que, ao ouvir-lhe imaginando a cartinha, calou-o:
- Que Papai Noel? Isso não existe, menino. Seu pai compra os presentes. Pergunta pra sua mãe.
Caso mais triste foi o de minha mãe. Ela acreditou no bom velhinho até os 10 anos de idade. Naquele tempo era diferente, não havia tevê, internet. As crianças eram mais bobas. Ela acordava todo dia 25 de dezembro e encontrava o presente debaixo da cama. Acreditava de verdade e descobriu a mentira da pior maneira possível. Seu pai havia morrido durante aquele ano de 1955. Quando se aproximava a festa, ela comentou com minha avó o que pretendia pedir ao Papai Noel. E ouviu a resposta.
- O seu Papai Noel já morreu.
Do jeito que ela conta, minha avó parece uma pessoa seca, amargurada. E talvez estivesse mesmo desse jeito, naquele ano, em função da perda precoce do marido. Porque, para mim, ela sempre foi doce. Triste, mas doce e incapaz de dizer algo desse tipo à uma criança.
A melhor história da noite, porém, que fechou com chave de ouro o assunto da ceia, foi a da minha cunhada. Quando chegou a vez dela, saiu-se com esta:
- Do Papai Noel, não me lembro bem. O que me marcou mesmo, de verdade, foi quando descobri que a Vovó Mafalda era homem. Isso sim foi um choque.
Simplesmente sen-sa-cio-nal!

sábado, dezembro 23, 2006

O surto do 13º

Talvez seja o espírito natalino, talvez seja o calor da guanabara. Ninguém sabe explicar muito bem o surto de benevolência que acomete a cidade no mês do 13º. Como que por milagre, daqueles que nem Papai Noel realiza, todos que têm algum poder querem usá-lo para melhorar a vida dos que passam o resto do ano elegíveis aos 95 reais do bolsa família. Nem que, para isso, distribua a renda alheia.
Acometida desse surto, por exemplo, a caneta do prefeito assina, todo mês de dezembro, um decreto autorizando a bandeira dois nos amarelinhos. 24 horas por dia, sete dias por semana.
- É o nosso 13º, chefia - explica o taxista que, graças à benevolência da caneta socialista, engorda o peru de Natal entre três e cinco reais por corrida, dependendo do trajeto.
A pistola do chefe da boca de fumo na Cidade Nova também é sensível às barbas brancas de Noel. Durante o ano todo ela cospe chumbo nos pequenos bandidos que se atrevem a realizar pequenos furtos na região do movimento. Em dezembro, se cala e tolera a transferência forçada de renda dos trabalhadores pobres que circulam pela região para os vagabundos de todas as idades que precisam melhorar a ceia de natal.
Os roubos aumentam consideravelmente nas ruas em volta dos morros de São Carlos e Boréu, mas não vá abusar da boa vontade da pistola. Assaltar pode, atirar no assaltado não. Porque, aí, quem fica sem 13º é o traficante. Vítima baleada nas redondezas derruba as vendas da boca. Não por causa da presença da polícia, veja bem. O problema é a imagem de área violenta.
Má fama derruba mais os lucros do que as viaturas da corporação. A presença da polícia é rotina na área, carros totalmente apagados, sem incomodar ninguém. Afinal, os tiras também precisam do 13º para engordar o peru de Natal.

terça-feira, dezembro 12, 2006

A Árvore da Fortuna e da Felicidade

Era uma vez um antigo reinado da fantasia à beira de uma lagoa e de um mar imenso, onde muita gente tinha pouco e pouca gente tinha muito. Um dia, um dos habitantes que tinha muito mais entre os que muito tinham decidiu gastar um pouco de sua riqueza. E assim semeou cinco milhões de moedas de ouro que fizeram nascer na lagoa uma árvore gigante, de 82 metros de altura, pesando cinco toneladas. Como era Natal, essa árvore se iluminava à noite, com a ajuda de 2,8 milhões de lâmpadas.
O espetáculo era tão lindo de se ver que todas as noites 80 mil pessoas se deslocavam até a beira da lagoa só para contemplá-la por alguns minutos. Nesse mundaréu de gente do reino havia de tudo: gente que tinha muito, gente que tinha pouco e até gente que nada tinha. Tudo ali, democraticamente misturado, assistindo pacificamente àquele milagre de luzes do Natal.
Muitos entre os que pouco tinham perceberam que havia, nessa festança de gente, uma oportunidade de aumentar o quase nada que tinham ganhando um pouco dos que tinham muito. E começaram a oferecer pequenas comidinhas. Pipocas, churros, churrasquinho, milho verde, hot dog, skol, skol, skol, e até outras quinquilharias que nem de comer eram, como colares, pulseiras, broches, pins e toda sorte de artefatos capazes de encantar a toda a gente.
Intrigados com aquela farra comercial diante das luzes, os sábios matemáticos da associação comercial do reino fizeram contas em seus ábacos e chegaram à conclusão que, distraída pelas luzes da árvore e pela fominha ou gula naturais do ser humano, a gente que à beira da lagoa se reunia distribuía 100 mil moedas de ouro por noite aos que menos tinham. Isso durante a semana. Nos finais de semana, mais e mais gente se aglomerava e o valor subia a 500 mil moedas de ouro!
A se confiar nos ábacos, descobria-se que 3,7 milhões de moedas de ouro passariam dos bolsos mais cheios para os mais vazios apenas naquele mês, já descontados os dias posteriores ao Natal, quando o interesse pelo enfeite diminuiria naturalmente. E somadas às 5 milhões de moedas gastas na árvore, o valor chegava a 8,7 milhões de moedas de ouro!
Perdidos em seus mundos particulares de zeros e vírgulas, os sábios nem se deram conta, mas estavam diante do maior espetáculo de redistribuição de renda espontânea do reino da fantasia. Sem que o Rei Sapo precisasse assinar nenhum decreto criando um novo imposto ou concedendo mais bolsas miséria, os que muito tinham distribuíam felizes suas moedas de ouro enquanto assistiam encantados ao show de luzes.
Naquela noite de Natal, graças aos frutos da Árvore da Fortuna e da Felicidade, os que pouco que tinham puderam devorar frangos mais gordos em suas ceias. E depois de tomar alguns copos americanos de cidra, sonharam com um mundo onde todos distribuíam mais suas moedas de ouro para que melhor todos pudessem viver.
O sonho, porém, não sobreviveria aos fogos do dia 31, que com suas explosões acordariam a todos da magia da luzes. E os que muito tinham voltariam aos seus ábacos mesquinhos que, por um defeito de fabricação nunca solucionado, só ensinavam a somar, nunca a dividir.

P.S. - Esse conto de fadas é inspirado num fato verídico. Todos os números citados são reais e há provas de que a Árvore da Fortuna e da Felicidade existe. São as fotos abaixo.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Central do Brasil - Parte 3: O Trem do Samba

Todo dia 2 de dezembro a Central do Brasil sai da rotina. Para comemorar o Dia Nacional do Samba, um trem especial sai carregado de sambistas da velha e da nova guarda e vai até a estação de Oswaldo Cruz (em Madureira). Fica lotado, cada vagão com uma roda de samba diferente. Os bancos viram camarotes (todo mundo de pé em cima deles pra conseguir ver melhor) e os corredores parecem bloco de carnaval.

Pela primeira vez tive a sensação de que não era o trem que chacoalhava a gente, mas a gente que sacodia o trem, impondo o seu gingado e o seu ritmo. E também não era o xleque-xleque do trem que predominava. Ele era abafado pelo canto da gente, que em coro fazia a sua voz mais alta que nunca.

Olha aí o vídeo que a gente fez (canta um sambinha enquanto carrega, porque leva uns minutinhos...):

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Só porque o Brasil não é racista

O Fundo Itaú Social tem um belíssimo projeto chamado "Criança - Cuidando do Futuro", que usa a página de abertura do banco na internet para anunciar seus programas. O banner mais recente ensina as pessoas a doarem 6% do Imposto de Renda para projetos sociais. Um belo serviço, diga-se de passagem.
Quem clica sobre o anúncio vai para uma versão ampliada que mostra quatro crianças. Uma japonesinha segura um cartaz dizendo "Conheça os direitos"; um menininho com cabelos de anjo, numa bicicleta lá no fundo, segura outro dizendo "O que é" e uma garotinha de cabelo lisinnho, um livro no colo, está sentada ao lado de uma placa com a inscrição "Resultados". O único menino negro segura o cartaz principal com a frase: "Ajude a melhorar a vida das crianças - Destine parte do seu IR para projetos sociais. Veja como é fácil".
A agência de publicidade que produziu o anúncio provavelmente nem percebeu, tampouco a diretoria do Itaú Social que aprovou a sua veiculação, mas o que fizeram aqui foi colocar o negrinho pra pedir a esmola.
Toda a campanha desse projeto, aliás, está repleta de preconceito. (Vocês lembram daquela em que a menininha doava um livro sobre um astronauta na agência Itaú? Passava na tevê. A meinina que doava era branquinha; o menino que recebia, negro.)
Isso é preconceito e do pior tipo: aquele que, de tão arraigado, passa despercebido para a maioria das pessoas (inclusive para o movimento negro).
Quem quiser conferir o anúncio, pode clicar no link do título. Se não entrar o banner do Itaú Social na página de entrada do banco, dê um refresh que ele aparece.

Rio pipoca

O cheiro no ar há tempos me atrai a atenção - e toma-me trocados do bolso. Nas entradas do metrô, nos pontos de ônibus, em qualquer possível ponto de aglomeração, lá estão eles, geralmente no final da tarde, com suas panelas fumegantes, iluminados por um lampião à gás, estourando em milhos as reminiscências de filme na sala escura da infância.
Em São Paulo nos acostumamos a encontrá-los na porta do cinema, mas no Rio eles estão por todo lugar. Isto é, desde que não seja dezembro. Porque no mês do Papai Noel, mudam-se todos para a Lagoa Rodrigo de Freitas.
No final da tarde do último sábado, uma procissão de pipoqueiros cruzava a ciclovia e a Avenida Epitácio Pessoa a caminho do Corte Cantagalo. Partiam cedo em busca do melhor lugar para servir suas pipocas às milhares de pessoas que iriam, naquela noite, assistir à inauguração da Árvore de Natal da Lagoa, enfeite gigantesco que já se transformou em ponto turístico nesta época do ano.
O lugar nobre e a presença de turistas e da upper class carioca inflacionam o preço da iguaria. Vanderlei, pipoqueiro da Praça Onze que faz ponto na entrada do metrô, vende-me o menor saquinho por R$ 1 o ano todo. Em dezembro, ele se muda para a Lagoa, onde cobra R$ 2.
Na semana passada, comprei-lhe uma pipoca doce e ele não tinha troco. "Paga amanhã", me disse. No dia seguinte, ele não estava. Agora, mudou-se para a Lagoa e vou ser obrigado a atravessar o ano com essa dívida. Ele só volta à Praça Onze em janeiro, depois que a árvore deixar de colorir as águas da Lagoa.
Num passeio rápido no sábado à noite - eu também queria ver a árvore que todos os anos inova na iluminação -, perdi a conta de quantos carrinhos de pipoca se enfileiravam à beira da ciclovia, entre outros de churros, cachorros-quentes, churrasquinhos, biscoitos globo e bebidas em geral.
Parei no que me pareceu oferecer as doces mais suculentas. Joel, o pipoqueiro, contou que ficaria por lá naquela noite enquanto houvesse gente olhando a árvore. Talvez até amanhecer. Ele aprendeu o ofício com o irmão, dono do ponto do Cine Odeon, na Cinelândia. Trabalha normalmente na Praça Tiradentes, mas é pipoqueiro há pouco tempo. "Só uns oito anos", calcula.
Para assumir a profissão é preciso ter algum capital. Um carrinho de pipoca novo, de médio porte, feito em alumínio, custa cerca de R$ 2 mil num depósito que os fabrica na Rua do Lavradio, na Lapa. É possível parcelar esse valor em até cinco vezes. O lugar também aceita carrinho usado como forma de pagamento do novo e os aspirantes a pipoqueiro menos abastados podem começar por um modelo recondicionado.
Joel contou-me que qualquer um pode virar pipoqueiro. Todas as tentativas de organizar a categoria fracassaram. Num país onde até traficante tem sindicato (os vários comandos da vida), os pipoqueiros talvez sejam os últimos trabalhadores livres, estourando milhos em suas velhas panelas surradas, à luz de um lampião.
Salgada ou doce?