domingo, setembro 24, 2006

Malandragem inocente

Plantão chuvoso no domingo abandonado, lanchonete do trabalho fechada, máquina de guloseimas desligada, restou apenas a vendinha da tia na rua para o abastecimento da dose mínima de serotonina na forma de chocolates. Diante do balcão repleto de anti-ansiolíticos, um senhor negro encomenda:
- Um pacote de bolachas salgadas, água e sal, e dois iogurtes vigor, de morango. Mais tarde dá uma fome e essa bolachinha com esse iogurte cai bem.
Embora a prudência desautorize advinhações nesses casos, me arrisco dizer que ele avançou nos 60 e muitos anos. Sorridente, doa simpatia em troca de atenção. E vai explicando à tia atrás do balcão:
- Embrulha em jornal pra mim, por favor. Pode embrulhar os dois. E coloca num saquinho plástico, por favor.
A vista cansada sorri por trás de aros de acrilíco marrom com lentes grossas, de idade também incalculável. O guarda-chuva desbeiçado pende do braço médio. O senhorzinho explica a razão de tantos embrulhos:
- Quando eu chego lá no meu pedaço, os malandros vêm logo perguntando "o que tem aí, tio, o que tem aí?" Assim embrulhado no jornal, eu respondo "é pra por na encruzilhada, fio". Eles saem correndo na hora. Se eu disser que é comida, eles pegam pra eles. Mas pra encruzilhada, ninguém quer. Eles têm armas grandes, mas têm medo de macumba.
E se despede, divertindo-se com a inocência da sua malandragem.

sábado, setembro 23, 2006

A foto é minha, a história é sua

Caros, a primeira história do desafio saiu no blog Le Bal Masqué, da nossa querida M. Não deixem de ler. Continuo esperando a participação de vocês. Vamos colocar a imaginação para funcionar!

quarta-feira, setembro 20, 2006

A foto é minha, a história é sua


Como os freqüentadores de blogs em geral gostam de escrever, o desafio é o seguinte: baseado na foto, crie uma historinha para a cena. Daqui a alguns dias eu conto a minha.

sábado, setembro 09, 2006

Central do Brasil - Parte 2: Sermão no trem

Mal o trem sai da Central e uma dupla de engravatados que parecia inofensiva começa a cantarolar: "Deus vai te guiar, ouça a sorte irmão... pode descansar, na tripulação...". Olho em volta. Duas senhoras acompanham a cantoria bem baixinho. Na minha frente, um jovem lê um livro grosso com as laterais das páginas pintadas de rosa. Cara de Bíblia. Só aí é que cai a ficha: entrei no vagão dos evangélicos. Depois fui saber que existe uma espécie de código que diz que o vagão x é dos evangélicos, o y é do carteado, o z é dos universitários... Cultura de trem, que só aos poucos a gente pega.

Mas então estou eu de pára-quedas no vagão dos evangélicos. A música vai ficando mais alta e os pastores quase tão agressivos quanto torcedores de torcida organizada. Eu discretamente tampo o ouvido. Não sei se eles percebem, mas o fato é que imediatamente se aproximam e começam a pregar um salmo sobre ovelhas desgarradas... Uma história de que Jesus viu a ovelha desgarrada e fez questão de não deixá-la para traz. Colocou-a no ombro e a levou... Pronto, me dei mal... Os caras me sacaram e não vão me deixar pra trás.

E não deixaram. Foram 50 minutos de tortura. "Deixe Jeus limpar o seu coração! Jesus é o caminho, a verdade, a vida", gritava o que parecia ser mais xiita. E depois repetia sem parar o sermão que mais me marcou: "Aceite Jesus para guiar a tua alma... Jesus tem o plano da vida de cada um para essa manhã, e esse caminho não tem volta!"

Peraí, deixa eu ver se eu entendi: você que está lascado na vida, brother, não precisa se preocupar, não precisa nem pensar muito, porque Jesus já fez a sua agenda. Se o seu dia for uma merda, não é culpa sua. Estava escrito. Se você está cagado na vida, um abraço. Foi Deus quem quis. E o caminho não tem volta. Tudo o que lhe resta fazer é encher a caixinha da igreja pra garantir uma vida melhor no reino dos céus. Deus do céu, que discurso é esse que promove a passividade e o conformismo? Que injeção de inércia é essa que injetam diariamente na veia daqueles que, insatisfeitos com a realidade, buscam uma saída na espiritualidade?

Me preocupa ver que a cada dia mais gente desencana de escrever o seu dia e se deixa levar passivamente pelas páginas do destino que sobraram a elas. Convertidas a cordeiros de Deus, passam a ser arrebanhadas também pelos pastores de araque e pelos salvadores da pátria.

sexta-feira, setembro 08, 2006

Bairrismo explícito

Entre tantas experiências novas, morar no Rio me deu a chance de experimentar o ser forasteiro e de repensar a forma como sempre tratei forasteiros na minha própria cidade. Como a maoiria das pessoas que passaram mais de 15 anos em bancos escolares, eu não me considero preconceituoso ou bairrista. Mas será que realmente não sou?
A rejeição carioca a tudo o que lembra ou remete a São Paulo me incomodou muito desde que cheguei aqui. E o mais engraçado é que, na maioria das vezes, quem mais agride paulistas jamais pisou na terra da garoa. Os ataques vão das piadas pretensamente inocentes até manifestações raivosas contra o que não se conhece. Comecei a me questionar. Será que eu fazia o mesmo com cariocas em São Paulo?
A Pri não concordava com as minhas queixas a amigos cariocas. Dizia que eu levava muito a sério as piadas. Até o dia em que ela trombou de frente com uma agressão despropositada.
Transitávamos de bicicleta pela Lagoa, a caminho do vôlei nosso de cada domingo, quando um casal caminhando desavisadamente fechou a sua passagem num trecho de velocidade. Ela freou e se queixou: "Pô, meu, precisa fechar a ciclovia toda?". Qual a foi a reação imediata da mulher? "Volta pra São Paulo, paulista!" Gritando, numa ferocidade despropositada.
Talvez eu fizesse as piadas, talvez imitasse o sotaque carioca. Mas agredir alguém pela sua origem, isso nunca fiz. Nem com cariocas, nem com gente de lugar algum. E essa cena aconteceu em plena Lagoa Rodrigo de Freitas, habitada pelo topo da pirâmide do IBGE. Gente que passou mais de 15 anos em bancos escolares - em alguns casos, fora do Brasil. Só posso mesmo lamentar.

quinta-feira, setembro 07, 2006

Noturnas

Além de longas jornadas de trabalho, as noites de quarta-feira sempre reservam surpresas na volta pra casa. Sem carro, invariavelmente recorro aos táxis amarelinhos do Rio. E depois de 12, às vezes 15 horas lendo histórias de esporte, volto na madrugada ouvindo incríveis histórias de taxistas.
A de ontem encontrou seu fio na inocente pergunta: "Onde vocês ficam parados durante a madrugada? O ponto aqui no centro não é perigoso?" O motorista engatou a segunda com um caso recente, aconteceu durante a última guerra entre os morros de São Carlos e Querosene, em julho (leia o post "Atrações da Cidade Maravilhosa").
O relógio batia 2 da manhã numa noite morna quando um negro alto, ouro grosso no pescoço e anel de São Jorge no anular, bateu no vidro. "Dá pra me levar no alto do São Carlos, piloto?" O piloto sentiu o terreno. "Bicho tá pegando lá hoje." O sinistro acalmou. "Sem caô, piloto. Sou morador, tá na paz."
Sabe como é a vida pela rua, ele expliava. Vai dizer não? Depois o cara manda no morro, já viu. Passageiro embarcado, o carro começou a subir o morro. No caminho, o sinistro foi dando a letra. A guerra estava pegando e tinham desovado 13 corpos no valão da Presidente Vargas. Nem a polícia sabia ainda. De repente, no meio do papo, dobram a viela e errada e dão de cara com o caveirão.
Pra quem não sabe, caveirão é o apelido carinhos dos blindados usados pela polícia para entrar nas favelas. Os PMs ficam entrincheirados dentro, fazendo guerra psicológica com frases do tipo "Eu vim buscar a sua alma".
O negro, ao ver o caveirão, ficou tenso. "Faz a volta, piloto. Faz a volta." O taxista obedeceu, voltou e desembarcou o sinistro algumas quadras abaixo. Na descida, deu carona a uma moradora que tinha saído à rua para avisar sobre a presença do caveirão. "Vi vocês passando e tentei avisar. Se o caveirão pega você com aquele um, tava enroscado. O homem é do movimento."
O motorista desceu aliviado e se sentindo importante. Tinha levado um graúdo, o que lhe garante moral e faz presença no ponto. Tratar bem os bandidos é importante, doutor, ele explicava, enquanto eu pagava a corrida. Outro dia peguei dois e um deles disse que estava me reconhecendo. Na hora de descer, pagou e me avisou. "Ia meter uma bronca contigo, mas como você é maneiro, vou te liberar." Tratar bem os bandidos garante a segurança.